segunda-feira, outubro 15, 2018

A secura do ar daqui.



Era mais uma daquelas longas viagens que papai adorava fazer para encontrar cachoeiras ao redor da cidade. Em minha cabeça de criança era curioso como aqueles prédios e chaminés que se levantavam a cada dia ainda permitiam que em algum cantinho relicto da metrópole ainda houvesse tímidas quedas d’água para algum divertimento dos tristes operários e moribundos. Enquanto papai acelerava e contava alto como investigou nosso destino, o ronco do motor do carro acusava certo cansaço, uma indisposição para seguir a estrada. Eu, agarrado a toda inocência e total desconhecimento da situação, ignorava qualquer possibilidade das coisas não acabarem bem. De minha parte, confiança absoluta em todo o saber de mecânica que papai exibia em um diploma de curso técnico dependurado na parede da sala. Mesmo que fora da moldura, ficava ali grudado por uma cola de eficácia duvidosa, certamente uma tentativa de roubar a pouca clientela de Vilson, o mecânico oficial do bairro. De toda forma, se ele não se preocupou com os ruídos estranhos, eu jamais me preocuparia também.

Ainda que eu estivesse errado, verdade era que minha mãe creditava pouco ou quase nada as competências de papai com engrenagens e molas. A ela restavam apenas lábios machucados e a típica inquietação das mãos quando andávamos naquele Chevette 73. Para piorar a atmosfera de tensão, ela nutria aversão por esses lugares que papai procurava. Dizia que estávamos nos banhando nos dejetos das indústrias, o que eu, ainda abraçado à ignorância dos meus poucos dias, achava que era particularmente um luxo, talvez por não saber o que a palavra “dejetos” significava e ter uma admiração cega pelas fábricas que se abarrotavam nos subúrbios sujos daqui.

Eu tentava disfarçar para não magoá-la, mas eu não sabia esconder tão bem minha paixão por aventuras naquela caixa de sardinhas desgovernada. Mais do que a chegada, a viagem era o que mais me encantava. Meu gosto era pela aventura de viajar sentindo o cheiro de combustível vindo da saída de ar e ouvir no toca fitas os boleros do casamento de papai e mamãe. E amava ainda mais quando o desenho da pista se transformava numa longa e monótona reta, momento em que eu, imediatamente, esticava o pescoço por entre os bancos da frente e implorava para mamãe que me deixasse pôr a cabeça para o lado de fora. Ela, que sempre fora muito apegada à segurança de sua cria, em poucas oportunidades me deixou fazer este que era meu passatempo favorito em viagens assim tão longas. Mesmo pessimista eu procurava seus olhos de jabuticaba - os mais lindos que eu já vira -, sem dizer palavra, tentando achar um pouco de compaixão, um pouco de solidariedade com a criança mais agitada que já pisou essa terra.

Neste dia, num aceno breve ela assentiu e apontou com o nariz a direção da janela, ainda sem tirar o olho de mim, supervisionando militarmente cada movimento meu. Papai, por sua vez, me mirou com os olhos apertados pelo espelho, olhos que denunciavam que logo abaixo se abria um sorriso largo como só ele era capaz de fazer, talvez já prevendo minha súplica assim que apontou na reta e viu que ela se estendia por alguns quilômetros. Apesar de parecer bobo, nesse passatempo eu provava o melhor dos presentes.

Num movimento único me esgueirei pelos bancos e pousei um beijo nas bochechas pálidas de minha mãe em agradecimento; e, tão logo comecei a girar devagar a velha e emperrada manivela, brotou também a ansiedade pelo momento, a qual nascia na altura do meu estômago e se difundia por cada cantinho do meu ser, como a espera por alguém ou a expectativa de entregar um presente. Meus pensamentos eram tomados pela antecipação de como seria sentir novamente aquela sensação, de como eu poderia repetir cada etapa como se fosse a primeira. Apesar de haver certo prazer nesse lugar, eu não podia perder muito tempo nessas ideias. A estrada não iria me esperar. Nem mesmo papai iria me esperar. Éramos apenas eu e aquele pequeno instante.

Meu corpo magro e frágil mal conseguia girar o mecanismo, me obrigando a urrar timidamente para tirar força de algum lugar e enfim me libertar daquela prisão. Com um olhar de pena e madura paciência, mamãe se solidarizou com minha peleja. Após um longo suspiro que denunciava seu arrependimento, vi seu pálido braço atravessar na minha frente e alcançar a manivela que enfim me libertaria. Cada centímetro que descia do vidro era uma oportunidade para calcular se já seria o bastante para eu passar pelo espaço que se abria como um presente e um laço. Quando julguei possível lançar-me à janela, senti um forte golpe da brisa me acertar em cheio. O vapor e o cheiro de gasolina que antes partiam das entranhas do carro eram agora substituídos pelo cheiro das poucas árvores que cresciam em torno da estrada ou pela inundação das minhas narinas que mal distinguiam odores naquele momento, tamanha a abundância do ar que - ironicamente - me sufocava.

Papai sabia o que fazer nesse momento e acelerou ainda mais, enquanto eu suplicava ao universo para que inseto algum se encontrasse comigo naquele momento, por menor que fosse. Ali começava o melhor dos prazeres, a boca aberta e o ar soprando a umidade das minhas bochechas pouco a pouco, no ritmo em que minha expectativa crescia, até que nada mais sobrasse e a dormência das mucosas secas começasse a fazer formigar e me divertir. Eu sentia o ar correr por mim despretensioso, fazendo seu trabalho pouco a pouco, com esmero e capricho. Aos poucos eu quase adormecia, minha mente inebriada pelo total desprendimento de tempo e lugar.

 Porém, as previsões de mamãe estavam certas desta vez. O motor do carro não mentia e o diploma de papai se fez inválido. Começou pelo céu da boca a umidade retornar, as árvores, que antes passavam rápido e se amalgamavam num verde esmeralda que mais lembravam muros partidos em pedacinhos, agora já deixavam que suas folhas pudessem ser contadas sem pressa por qualquer transeunte.

Despertei de meu transe e fitei discretamente o rosto de mamãe, que me olhava de volta com certa pena do meu entusiasmo, dando breves risadas dos solavancos que eu fazia ao tentar fazer o carro nos dar mais uma chance. O olhar de papai se fez de sorriso a culpa, enquanto entreolhava sua companheira ao som do que devia ser Orlando Dias e aquela triste voz de uma solidão raramente reconhecida – e como doíam na alma essas canções...

Papai, resignado, foi levando o carro enfumaçado ao acostamento, planejando sua próxima tarefa, balbuciando alguns termos e procurando em suas memórias de garoto o que estaria acontecendo com o carro. Eu já me afundava no banco de trás, fechando o vidro e tentando organizar a juba quase impossível de pentear. Eu não estava satisfeito, posto que o vento não terminara o trabalho e havia boas milhas de reta para percorrermos. Já estávamos quase parados. E paramos, enfim.
Papai foi o primeiro a descer do carro, com uma pisada forte, um pouco desconsertada, e o cabelo ligeiramente desgrenhado por causa do nervosismo – o que ele mais gostava era de arrancar um sorriso do rosto da mamãe e atacá-la com cócegas em seguida – por isso ele não podia decepcioná-la de novo. Quando levantou o tampo do motor, foi recebido com uma lufada de ar quente e fumaça que o fez recuar. Tudo isso inaudível para mim, dado que os vidros, já fechados, não nos davam pista do que se passava lá fora. Minha mãe já havia deixado seus lábios em paz e agora atacava com certo vigor as unhas da mão esquerda. Ela estava certa... Enquanto eu aceitava que passaríamos algumas horas ali, esquecidos como brinquedos velhos aguardando meu pai desistir de sua teimosia e pedir ajuda, subitamente o vejo dando saltos por entre as bolhas de fumaça escura e fazendo um gesto nos chamando para fora. Sua expressão era tão infantil quanto a minha em meu ritual, e apontava na direção do sol, gritando o nome de minha mãe e arrancando às pressas a calça e desabotoando a camisa, quase que simultaneamente.

Lancei-me na direção da outra janela, procurando ver o que papai vira. De começo achei que ele estivesse sendo atacado por formigas lava-pé, mas ao me esgueirar um pouco mais vi que ele apontava para baixo, enquanto se despia. Alonguei bem meu pescoço para compensar a baixa estatura e, bem longe, abaixo de um longo declive, se estendia um lago límpido, refletindo como um espelho o firmamento. A campina ao redor balançava ao gosto do vento, que intenso soprava como eu tanto desejava antes de nosso naufrágio em terra firme. Lembrava-me os cabelos sedosos de minha mãe, dançando ora à esquerda, ora à direita. As ondículas na água brincando de morrer na borda.

Mas uma coisa me arrebatou de súbito, uma árvore que se erguia à beira do lago, imponente, segura e carregada de frutos que eu não sabia identificar. Era ao mesmo tempo um abrigo, uma sombra fresca e um trampolim para lago. Meus olhos se arregalaram involuntariamente tamanha alegria de saber que eu nadaria no lago ainda que a viagem – minha parte favorita - tivesse sido abreviada.

 Vi papai descer em disparada, como sempre, mas com ele minha mãe que já havia deixado o carro. Sem que eu pudesse perceber, ela apanhou uma cesta de comida, e correndo morro abaixo se equilibrava para não cair na pequena trilha que conduzia ao oásis. Eu me coçava para chegar logo lá, queria compensar o fracasso da viagem e do meu passatempo, mas me perdi na estranha hipnose de ver os dois tão felizes e serenos. O sol iluminava as mãos dadas e sorria para nós, amarelo manga. Permiti-me ficar ali a contemplá-los, sem causar qualquer ruído naqueles corações que se mostravam de novo sintonizados e alegres.  Minha mãe deixara as unhas em paz e suas mãos já repousavam nas de papai. Um batom vermelho devolvera o viço de seus lábios e o rubor das bochechas entregava sua felicidade. Ela cansara da fuga. E uma pequena lágrima rolou de seus olhos, como que libertando uma dor, um senão. 


A imagem foi gentilmente dedicada ao texto por Hermano Zenaide, que publica desenhos e opiniões em sua página no Twitter: https://twitter.com/hermanozenaide

2 comentários:

  1. E uma pequena lágrima rolou de meus olhos ao ler uma de suas escritas depois de tantos anos. Que paz encontro em suas palavras... que paz.

    Com amor,
    Wii.

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    1. A criatividade me deu de presente uma nova chance, que não poderia ousar desperdiçar. Esse conto fala exatamente de paz, e de como essa paz alimenta um amor de belezas tão singelas. Os boleros ainda tocam nas pontas dos meus dedos, conduzindo cada frase... e me arrancaram lágrimas de imediato.

      A simplicidade (que era o título desse texto antes que eu percebesse que o lago acabara com a secura dos corações e das almas) é a mais bela forma de alcançar o outro. E eu precisava dar esse final de presente aos dois.

      Beijo com cafuné e amor,
      Tuti.

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