Um bom guisado de
carne, batatas e cenouras cozidas no vapor. Era só o que serviria naquela
noite. Era engraçado como o hábito de Carlos de beber enquanto cozinhava o
atrapalhava tanto na dinâmica da cozinha. Os legumes estavam já um pouco
passados, a carne ainda era uma incerteza e as batatas ainda mais. Era como uma
corda bamba para um inexperiente bêbado. Ele sabia que o vinho que comprara
bastaria para três ou quatro jantares opulentos, mas o atraso de Giselda o forçara
- além de roer as unhas e se lançar no parapeito de sua sacada por algumas
dezenas de vezes – a também beber além da conta e esvaziar a humilde adega que
seu salário magro podia sustentar. Ele acumulou as recomendações dos entendidos
do assunto e foi pouco a pouco se preparando pelos meses que se seguiram até
que a jovem aceitasse, enfim, suas ininterruptas e entediantes súplicas. Ao se
debruçar na sacada ele aproveitava para sentir o cheiro das ervas recém-regadas
que sua mãe, tão solidária, havia levado como presente de aniversário. Eram
ervas de toda sorte que ele ainda se atrapalhava para tentar usar em suas
empreitadas ao fogão. O bom moço já estava pouco sóbrio, por vezes errando a
porta do quarto para checar as horas no velho relógio que reformou - um presente
de sua avó. Mas, ainda esperançoso, talvez o efeito do etanol lhe roubando um
pouco a capacidade de distinguir certo e errado, provável e improvável, ele se
divertia com as novas sensações que o visitavam naquela noite. Esperar era uma
excitante e inexplicável infinidade de possíveis roteiros, os quais ele mal se
segurava para descobrir. Cada porta cerrada era uma nova história, um fio de lã
de um novelo múltiplo e perigoso, teias nas quais ele, voluntário, iria se
prender. Livros e contos não lidos, esse era o exercício daquela noite. A
descoberta.
Giselda, ao contrário,
estava pedindo seu quinto Martini há alguns quilômetros dali, dando o
"tempo das moças" para então cair no alçapão que - não podia mentir -
lhe causava certos tremores de medo e excitação. Já havia dispensado alguns
aventureiros que não se aguentavam em suas frustrações, cadeiras e copos cheios.
Tão logo o lobo frontal se despedia dos desmiolados e estúpidos rapazes, eles
se animavam para importuná-la. Era curioso como o pingue-pongue que Cortázar
tão inocentemente descreveu na novela do cruzeiro sem capitão era terrivelmente
mais bobo e fútil no mundo real. Eram vazias interpelações e os discursos só
não causavam vômito porque desperdiçar um Martini feito com tanto esmero seria
uma lástima. A vantagem de se embebedar no Blues era a boa amizade que mantinha
com Jacques, o barman franco-brasileiro que a protegia de qualquer armadilha desse
tipo. No entanto, aquele era o pior lugar no qual ela podia se arriscar numa
noite densa e provocante. Estava longe da casa de Carlos e talvez os tostões do
táxi já tivessem se transmutado paradoxalmente em álcool. Não era alquimia, era
vontade de se perder um pouco.
Enquanto, distraída, Giselda
dava voltas com a delicada taça nas mãos, evitando revirar a bolsa para
constatar seu descuido com a conta, mal sabia que seu par colocava em prática o
que havia treinado por toda a semana, testando a receita e aprimorando aquilo
em que a boa vida não conseguiu lhe letrar, a culinária. Apesar de todo esse
empenho, ela não estava realmente esperando um jantar. A descrença em relação a
Carlos se dava principalmente pelo desajeitado modo como ele propôs aquele encontro,
um erro de convidar sem convidar, apostando que a mera insinuação seria o
bastante para atraí-la ao seu covil. Giselda, apesar de ter se aborrecido com
os péssimos modos do homem, já havia passado por coisas piores - mesmo que ela
não as classificasse assim. E, de alguma maneira habituada, disse um sim apressado,
porém farto em curiosidade por ver que aquela criatura peculiar havia elaborado
as circunstâncias perfeitas para que nada escapasse de seus atentos olhos de
folha seca.
Colocou-se então de
pé; e, consertando a barra do vestido preto de lustrosas e pequeninas contas, reuniu
o dinheiro que tinha, dobrou-o sobre o balcão e deu uma piscadela para Jacques
que, num movimento charmoso com a cabeça, entendeu logo sua despedida. Após um
último e longo murmúrio, a moça deu um passo firme em direção à porta, decidida
a terminar o que começara. No caminho até a saída os adornos do vestido
acariciavam os ouvidos mais atentos. Era lindo e ao mesmo tempo intrigante
aquele caminhar, como que destacado da realidade, flutuante até. Mesmo que
munida de muita segurança, a moça ainda se lembrava dos momentos em que teve de
se sujeitar a humilhantes esperas em frente a interfones e esquinas frias.
Torcia para que não fosse assim. Sua esperança morava na ideia de que Carlos
fora o primeiro a evitar o tosco protocolo e pôr as cartas todas na mesa, esquivando-se
de uma refeição artificialmente deliciosa e tão maquiada quanto uma gueixa em
seu primeiro e triste treinamento. Ela já teve de aturar tudo toscamente posto
a mesa, com cores falsas e um conforto que contava uma história previsível. Se
começava assim é porque iria se deteriorar em alguns dias e ela voltaria a ser
apenas um pedaço de carne, ridicularizada em rodas de conversas e um
trofeuzinho estúpido ao lado de alguém semelhante aos aventureiros de bares e
festas sem importância que arrastam multidões. Já fora vítima dos jogos de
impressionar... Isso a balançava de vez em quando, mas Carlos ainda era um fio
de esperança naquela selva em que se propôs a caminhar. Ele havia dito que a
esperaria com a mais zelosa pontualidade e que ela não iria se arrepender. E,
por mais raro que isso fosse, acreditou, e tomou um táxi até onde o dinheiro
dava.
Distantes dali os
pensamentos do homem orbitavam o possível desapontamento de sua convidada ao
perceber a falta do vinho. A comida, que, na melhor das hipóteses, seria pouco
apetitosa, o preocupava na mesma medida. Como um soco o desespero lhe arrebatou
e o fez procurar as chaves no bolso da camisa com algumas pancadas no peito.
Precisava comprar mais vinho. Cada segundo longe de casa era a chance de
Giselda chegar, e de também ir embora caso o interfone, sozinho, não a
recebesse como ele gostaria. Via-se numa espécie de indecisão, uma sinuca
angustiante e sem saída – teria ele de pagar a conta? O lugar mais próximo onde
poderia repor as poucas garrafas da estante ficava a algumas quadras de sua
casa, sem qualquer garantia de estar aberto, pois eram dias estranhos esses de
crise. Apesar disso, precisava jogar com a roda da fortuna, uma decisão óbvia,
já que a mera possibilidade desta noite existir já era uma evidência de que nem
sempre tudo estaria sob controle. Era uma jogada de risco, de fato, mas sua
vida fora monótona demais até então. Num golpe único reuniu a carteira, as
chaves e o chapéu, abrindo a porta com a delicadeza de um gigante, a pressa lhe
consumindo a sutileza. Descendo as escadas, – evitava o elevador sempre com
defeito e malcheiroso – deparou-se com Ana, a vizinha dos gatos, fazendo
estranhos ruídos para atrair um bichano que havia escapado. Um boa noite breve
se seguiu sem resposta, e ele já não escutava mais o que se passava em torno de
si. Os degraus pareciam mais estreitos, porém antes que fosse possível qualquer
acidente ele já estava na calçada, mirando a direção do mercado. Inspirou forte
pela última vez, atravessou a monótona rua que levava ao seu apartamento e
rumou semi-cambaleante ao seu destino. As vielas e curvas do bairro ainda
tinham alguma vida, cães ladravam a noite e outros bêbados os acompanhavam em
cantorias tristes. Ele sentia certa vontade de compor o coral, talvez por acreditar
que a moça não viria. Contudo sua curiosidade estava mais aguçada que o normal.
Seus passos o apressavam a cada metro que cumpria naquela procissão, a
embriaguez se despedindo aos poucos, levada pelas lufadas de ventos que
irrompiam dos morros que cercavam o bairro de Santana.
Perto dali, Giselda
contava as últimas moedas do táxi, agradecendo a gentileza do moço ao dar um
desconto amigável. Precisaria caminhar pouco até que finalmente concluísse sua
parte no trato. O salto ainda lhe fisgava um pouco os calcanhares, mas o álcool
anestesiava ligeiramente o mau jeito das pernas, sobretudo agora que o Martini
fazia sua cabeça e brincava com suas ideias. Acelerando o passo, avistou o
mercado fechado, em cuja porta uma luz bruxuleante anunciava uma oferta
qualquer que ela não podia decifrar. Seria vinho? Salivou um pouco ao
lembrar-se do último Malbec que experimentou na companhia de sua amiga Julia,
mas sabia que Carlos haveria de escolher algo próximo disso – haja vista que
ele logo perguntou o que ela iria tomar. Serpenteou por algumas esquinas e
julgou estar próxima da casa de seu anfitrião. Seus pensamentos desorganizados
a obrigavam a ligar uma espécie de piloto automático, fato que a removeu
parcialmente da realidade. Esse descuido foi o bastante para que numa curva -
ou reta, mas ela precisava de uma justificativa para sentir menos culpa – um
muro orgânico e não muito robusto a interrompeu na caminhada. Um rosto familiar
se abriu na medida em que o chapéu coco descia para uma reverência estranha. A
moça despertou do transe martínico e seus olhos pediram uma trégua. Apertou-os
com pressa e viu a figura de Carlos, elegante e com uma fala nervosa que ela
não compreendeu muito bem. Ele estava alegre, como sempre, um sorriso quase infantil.
Ela sentiu certo prazer naquela presença tão familiar e amigável, ele era um
abrigo. Conteve-se um pouco, mas os calcanhares cederam ao magnetismo daquela
companhia. Sua cabeça acertou em cheio o ombro de Carlos, amortecida pelo
delicioso sobretudo italiano do qual ele repetidamente reclamava não poder usar
no intolerável inverno dos trópicos. Um tímido oi quebrou a tensão, ao mesmo
tempo em que ele lamentava o mercado fechado e a falta de vinho. Giselda, numa
espécie de sono e abraço, balbuciou algumas palavras inaudíveis, enquanto ele
pedia a ela educadamente a permissão para em seus braços irem para casa, pois o
jantar já esfriava e ele ia se sentir extremamente culpado pelo fracasso das
duas únicas opções que ele reservou para aquela noite.
Ao adentrarem o
prédio, os chamados de felino de Ana ainda ecoavam pelo hall e pelas escadas.
Ela ainda tinha esperança de encontrar o sortudo gatinho que havia descoberto
como se livrar daquela prisão – pobre senhora. Giselda estava rendida, o corpinho
já mole, guiado pelos braços igualmente fracos de Carlos, que tirava forças do
carinho e da sorte de tê-la ali para chegar até seu apartamento. Subindo as
tortas escadas do prédio cinquentenário, já se podia sentir o cheiro da receita
inundando o terceiro andar. Logo que abriu a porta o relógio badalou onze vezes
anunciando o quase fim da noite. Também em onze passos Giselda se guiou pelo
sonoro cuco e cambaleou na direção do quarto. Ao passar pela penumbra da cozinha
a jovem elogiou de forma brincalhona o cheiro da comida. Passou reto, ignorando
o olfato atraído pelo guisado, dando uma gargalhada maldosa que fez Carlos pensar
que era o mais puro sarcasmo. Ele estava menos ferido com toda a circunstância.
Os floreios do vinho e do jantar eram uma estúpida desculpa para encontrá-la,
mas estava orgulhoso de ter conseguido ao mesmo terminar essa etapa. Claro que
ele também havia ensaiado algumas coisas pra dizer, mas não sabia se ela
ouviria com tanta atenção, dado o estado em que chegou. Antes que ele a
espiasse no quarto, foi até as panelas para guarda-las e reunir o jogo de
talheres que havia preparado conforme as dicas de sua mãe. Se alguém pudesse
fotografar aquele cantinho perderia parcialmente o fôlego, tamanho o capricho e
simetria da mesa, a composição dos quadros, livros (tinha muitos livros) e o
cheiro doce que partia dos móveis, dos lençóis e da brisa vinda da janela de
correr.
Ao passar pela porta
do quarto, Carlos viu aquela criatura de pele alva se projetando pelo extenso
colchão em um perfeito contraste com a falta de luz ambiente. As contas do
vestido entoavam uma suave melodia conforme sua convidada se acomodava e puxava
o cobertor para si. Era um momento tão único que ele jamais ousaria interromper
para lhe oferecer qualquer ajuda. Fora dali, os chiados de Ana já haviam
cessado e ele sabia que a noite terminava nesse instante. Antes de voltar sua
atenção a Giselda, ele se perguntou se o pobre gatinho havia retornado ou
achado melhor destino. Torcia pela felicidade dos pobres bichinhos que
habitavam o prédio. Este devaneio durou pouco, até que teve a ideia de ir até o
banheiro da suíte e se olhar no espelho, procurando qualquer fragilidade no tecido
dos sonhos. Se de fato fosse, queria permanecer um pouco mais, deliciando-se da
presença de sua amada.
Lembrou-se do ruidoso
relógio e desligou-o sem pestanejar. Ao
atravessar o quarto, Carlos ia pisando com cautela no piso de tacos, torcendo para
não despertar a moça. Chegando na beirada de sua cama, acomodou-se no extremo de
seu colchão, evitando roubar de Giselda algum calor que fosse indelicado ou
impróprio. O teto da casa parecia sugar a atmosfera, deixando o ar cada vez mais
rarefeito, levando dele algum resquício de sobriedade.
Quase fechava os olhos
quando Giselda, abruptamente, se virou na sua direção. Como que em um movimento
de susto e tensão... Os lábios entreabertos e secos lançavam nele um hálito do
que ele logo reconheceu serem as flores aromáticas de um bom dry Martini.
Deixou-se levar pela onda inebriante da bebida enquanto se esforçava para
separar dela o perfume que se impregnou no sobretudo que esqueceu de tirar. Em
outras ocasiões ele se amaldiçoaria por tamanho descuido, mas um involuntário
sorriso se abriu na sua face agora em chamas de tanto desejo. Ele sabia que
tinha de saborear cada segundo, cada ciclo de respiração de sua companhia. Era
claro como o dia que no primeiro raio de sol o lírio que comprara para adornar
o quarto estaria já um pouco murcho. Mas seu maior receio era de que a essa
altura ela já tivesse feito o bilhete e esquecido propositalmente seu xale
sobre a escrivaninha. Um ciclo que iria se repetir, e que ele mal podia esperar
pela próxima rodada. E adormeceu em um sono despreocupado.
A delicadeza e doçura empregadas nesse conto fizeram com que meus olhos não se desgrudassem dessa tela, torcendo pra que ainda houvesse um parágrafo ou mais pela frente. Coração borbulhante e deságua.
ResponderExcluirQue encontro. Que paz. Que conforto em meio a tanto caos.
"... ele era um abrigo."
Ainda retorno aqui diversas vezes tentando encontrar um modo de estender essa noite e presentear Carlos com um detalhe, uma fala, um olhar... Está claro que aquele momento - a rendição, o colchão e o perfume - é tudo o que ele necessitaria para saborear a mais pura felicidade. É curioso como o jantar e o vinho se perderam no prazer único da atmosfera compartilhada pelos dois. Ela, que só precisava de um ombro, um sossego e um abrigo, e ele, um sorriso e um desejo.
ResponderExcluirUm sonho esse encontro de paz e serenidade em meio a tantas tempestades vis.