sábado, março 22, 2025

Pétalas de Margarida

"Se eu disser que vi um pássaro 
Sobre o teu sexo, deverias crer? 
E se não for verdade, em nada mudará o Universo. 
Se eu disser que o desejo é Eternidade 
Porque o instante arde interminável 
Deverias crer? E se não for verdade 
Tantos o disseram que talvez possa ser.  
No desejo nos vêm sofomanias, adornos 
Impudência, pejo. E agora digo que há um pássaro 
Voando sobre o Tejo. Por que não posso 
Pontilhar de inocência e poesia 
Ossos, sangue, carne, o agora 
E tudo isso em nós que se fará disforme?" 

—  Do Desejo em Do Amor (1999) por Hilda Hilst (p. 66)


I

Vá, vá viver um grande amor.

Abra ferida nova de vida, clareira, e destino.

Rasgue no couro as velhas manias, papéis desbotados, antigos.

Vá, toma pela mão teu sonho.

Repita os mesmos passos, lance os mesmos dados.

E, relógio parado no tempo, acerte teus descompassos.

Vá, vá viver um grande amor.

Mas não tome por amor o desejo,

Que ao despertar vai olhar-te de volta o espelho,

E lhe faltará a pureza nos gestos,

A calma e a cama de alguém feliz.

II

Portanto, não viva um grande amor.

Apague a trilha detrás de ti,

Oculte teus passos, recolha as migalhas de pão.

Dissimule tua pequena morte, 

Ou, se puder, só morra assim pequena na mais pura solidão.

Vá, faça-te densa neblina matutina,

Mude de rota, entre em qualquer escura viela ou rua mais torta,

Mude de vida, de direção, e guarde-me no terço mais sereno do teu coração.

Não, não vá viver um grande amor.

E se viver, que seja tão somente estúpido, torpe, afã,

E que ao acordar não encontre sentido,

Nada além de um reflexo tosco e distorcido,

Um gesto, um gosto amargo, a ansiedade do infausto, do desafortunado.

III

Mas insisto que vá, vá viver um grande amor!

Lance no espaço indecifrável do mundo as tuas melodias,

Cante pra eles tuas novas, 

Floresça nova estação, a primavera dos teus dias.

Vá, remende minhas falas, repare minhas agruras,

Goze as nossas melhores noites e diga que são só tuas.

Refaça as viagens, leia meus livros, ouça meus discos,

E, atriz de teatro, encarne meu personagem no palco das ruas.

Vá, perca-me nas esquinas da velha cidade,

Encontre-me no limiar de um tempo sem memória,

Minta para si teus causos mais vulgares.

Vá, vá viver um grande amor.

Ame o próprio amor, faça-o fonte inesgotável de alegria,

E sustente o peso e a leveza de ser um em dois e dois em um.

IV

Mas se por um segundo hesitares, não vá viver um grande amor.

Confidencie pra mim a silenciosa ausência da dança,

Proteste, quiçá, a falta de gargalhadas, um fato novo.

Deixe que as margaridas no vaso não desabrochem, que murchem!

Peça à cigana que ponha as cartas,

Esconda-se nos búzios, nos arcanos do tarô,

Nos Enamorados, no Julgamento ou no próprio Louco e suas vicissitudes.

Esqueça minhas frases decoradas e tolos saberes,

Lamente a morte do desejo e abrace o desajuste dos tempos líquidos, impermanentes.

Não, não vá viver um grande amor.

Trema de medo, esqueça a forma, o tom, a nota, a história

Ceda por fraqueza ao peso dos afetos falhos

Da invencibilidade do adeus e da memória.

Vá, vá viver um grande amor. 

Vá. Não vá. Vá. Não vá. Vá. Não vá. Vá.


-A


sexta-feira, março 07, 2025

Rio Doce

20/07/17 • 14:38

Usei a própria ponte que entrecortava teus vales como apoio para escrever esse bilhete. A letra miúda que agora transcrevo eu usei para economizar espaço no único papel que sobrou no bolso: um pequeno envelope miúdo, já envelhecido pelos oito anos que nos separam daquele dia. No verso, a fraca tinta azul denuncia meu medo de perfurar com a ponta da esferográfica minha chance de fotografar aquele momento com palavras, na falta de luz.

Lembro-me que foi como uma pintura suja nosso primeiro encontro. Como um pincel mergulhado em um indistinguível godê de aquarela, nem eu e nem você íamos muito bem. Tons escuros, águas túrbidas e desarmônicas. De ti, só conhecia os afluentes, vênulas e arteríolas, brejos e riachos, pequenos braços dispersos no globo, trechos que alimentam teu pulso, tua força majestosa que atravessa estados, nutre oceanos, talha caminhos. Nos meses que antecederam minha não solicitada visita, via-o pela TV, que, a bem da verdade, anestesiava o que acontecia na crueza da tua verdade. Era como se abafassem meus ouvidos com as mãos apertadas contras as têmporas, isolando-me no silêncio das vinte outras pessoas que me acompanhavam naquela jornada. Havia ali uma conversa telepática, um fragmento de luto pelo teu fluxo que, resistindo, ainda agoniza(va) calado a correnteza cor de lama. Em uma cicatriz diferente daquela que se fecha, pude ver o duro golpe que desferiu o progresso e seus intrincados e nefastos nós de morte. Portanto, meu caminhar naquela ponte era como um cortejo sobre o próprio caixão, uma dor que nem sei decerto descrever. Minha mágoa, por tradição, me pediu a caneta e eu só soube obedecer.

Enquanto eu procurava um cantinho discreto para esse registro, um casal de aves cruzou o céu, cantarolando alguma melodia para quem quer que as ouvisse, maritaquinhas alegres se amontoavam nas embaúbas e outras árvores mais corajosas que se prendiam à margem. Suas conversas familiares enchiam o ar com um paradoxo de beleza e dor. Parecia uma lição, um recado sutil para os ouvidos que - há muito convertidos - já não precisavam daquele sermão. Seu canto, seu apelo quiçá, eram como notas abafadas pelo vapor dos fornos, motores a combustão e explosões que separavam aquele santuário da realidade. Se eu pudesse, seria eu o teu maior eco para o mundo, para além da pequena bolha que se formava ali, o silêncio do grupo, as aves procurando respostas, os peixes buscando ar.

Saiba que não quero aqui achar muito prazer nas palavras. Não quero correr o risco do cinismo da dor. Apesar disso, eu sei que você vai encontrar tua cura, vai cicatrizar as feridas e de nós não guardará mágoa. Vai crescer nossos alimentos, cuidar da nossa gente e sorrir de novo um dia. Um tempo em que talvez eu não esteja aqui pra te ver renascido sob o cuidado de mamãe Oxum. Mas sei que virá. Por isso rogo para que teu leito se cubra de verde, que tua pressa de chegar no Atlântico seja tão grande quanto o cuidado com cada fragmento de vida que te habita, habitou e habitará. Cada minúscula célula que te chama de casa, cada grão que alimenta as nossas crianças, cada filhote e sua mãe matando a sede na ribeira.

Viva o Rio Doce e sua história milenar. Viva sua beleza imortal de uma pintura inabalável. Lamento cada gota imaculada que um dia pousou no teu leito e espero ansioso um dia poder me banhar nas tuas águas.

 

-A

terça-feira, janeiro 28, 2025

Série Fragmentos - VI

6. Gameleira

Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso? 

—  Grande Sertão:Veredas (1956) por Guimarães Rosa (p. 43)


Tu eras grande como um abraço impossível. Ao tentar te envolver nos meus braços, quando muito, tomava talvez a quinta parte do teu tronco. Na casca, as gravuras marcavam sólidas a tua força, exibindo algumas dezenas de amores tatuados na pele como um tributo ao teu infinito secular e ao nosso perecer quase romântico de algumas décadas, talvez uns pares felizes, outros nem tanto. Em meu descanso de tardes vazias, entre os vincos das tuas raízes, quase podia ouvir as águas percolando pelas tuas veias, as folhas exsudando vapores, seivas retornando às raízes e o frescor da tua aura desafiando tremores de gente, máquina e trem. Da copa, era fácil ouvir os pássaros inquilinos cantando a chegada dos pequenos e sentir subir o arrepio da tua sombra se projetando serena sobre meu corpo já cansado e um tanto frio. O pôr do sol chegava mais cedo hoje — vias de inverno — e o cheiro de café passado já me convidava a entrar. Antes do chamado da minha senhora, porém, quis lhe contar, num suspiro em segredo, sobre meu medo de partir e de como eu te imaginava daqui a um tempo. Se lhe podariam as franjas, se lhe deixariam de pé, se lhe dariam o espaço necessário para que sua fundação se mantivesse ali, corajosa, profunda, intensa. Também dividi, numa dúvida aguda, se eu era o primeiro a te adotar assim como amiga, como irmã. Se, com você, minhas memórias também partiriam uma última vez...

Eu bem sei que plantas são criaturas imóveis, mudas. Não precisa doutor vir me contar do que a sabedoria do campo já satisfaz. Mas, pela falta de escolha, por natureza, não é certo se tua natural resiliência bastaria para atravessar a chegada dos tempos modernos. Sabe, talvez seja esse um exemplo barato demais aos homens. Se não podes escolher o espaço, o tempo, que seja então a força de permanecer vivo que opere os milagres, que possa nutrir essa sanha de viver apesar de tudo. Era um tanto assim que eu olhava meu povo ao redor, os esquecidos sem nome ou herança. Aqueles a que se referem como "os dali". Um acaso inconveniente no caminho do progresso...

Olhando assim para meus pequenos a correrem pelo quintal, eu via marcado em nossa pele, em nosso simples caminhar, algo de árvore antiga, algum parentesco distante com aquele pé de gameleira e com outros tantos que foram nos deixando pelo caminho. E não digo pelas rugas e a pele salgada pelo sol, mas por aquele jeito teimoso de encarar o dia, apesar da mais óbvia e essencial razão de não fazê-lo. Do verbo impeditivo, jamais imperativo, de desistir e não mais sonhar. De ceder à força acachapante da desesperança onde nem mesmo o otimismo ingênuo da religião ilumina e alcança. O que éramos e para onde iríamos? Seríamos então raízes procurando respostas ao invés de água? Seria a nossa subsistência a chance de espiar o que vem logo ali, no próximo dia, na próxima estação? Quem é que separa no leito do rio, bateia na mão, vida e morte, ainda que lentas?

Portanto, nas árvores vejo uma chance gratuita de guardar memórias, tão antigas quanto o tempo, tão imponentes como Deus. São parte da minha história e lembrança da minha passagem por aqui. Serão elas a contar aos meus netos quem eu fui, as músicas que cantei, as refeições que fiz ali, aconchegado em teus pés, uma ode à vida tão mais concreta, tão mais intensa e cheia de propósito que a minha. E, nesse intento, deixar uma pequena lição, que, por mais discreta, por mais elementar, talvez por sorte lhes dê um pouco mais de vida para seguir tentando.


-A

terça-feira, novembro 12, 2024

Um Quarto de Mim

                Ilustração por Hermano Zenaide

“[...] rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira [...]”

—  Lavoura Arcaica (1975) por Raduan Nassar, Capítulo 9, p. 54.


Hoje chorei tua partida antes da hora. Só de me cruzar o pensamento o teu descanso, senti profundo o imenso vazio que deixaria tua passagem. Pude ouvir os ecos navegando pelos cômodos da casa, as tuas manias se despedindo dos detalhes, o jeito gentil de mexer os talheres, o impecável forro de mesa florido e a poeira acumulada sobre o móvel que sustentava a TV — raramente ligada aos quatro ventos, raramente necessária para preencher o silêncio pacífico da sala em penumbra. Nesse delírio, senti como se desaparecessem tuas vigorosas plantas, o caminhar sereno, desapressado, teu canto cada vez mais lindo em nossos encontros. Porém, no curso desta hipótese, culpei-me por perceber que talvez nunca tenha lhe contado sobre o amor e a luz que trazes ao mundo. Como ser um produto da tua existência me torna um fragmento das tuas verdades, um broto, um apêndice complexo da tua natureza — expandido no tempo, arremessado no espaço agora tão distante do teu solo, da tua companhia. E aqui, sozinho e em silêncio, imaginei também o teu medo de partir, como praguejara em segredo contra teu corpo decidindo ceder sem teu consentimento, o terror que estaria atravessado em cada movimento, desde o café da manhã até a última página lida do livro de cabeceira. Dividi contigo o infortúnio de saber que não teremos lido todos os livros que gostaríamos, dito ou escrito todas as palavras que cruzaram nosso pensamento, as pessoas e amores que deixamos para trás, nossas canções...

Sabe, admito que nunca te conheci tão bem, teu silêncio sempre foi uma porta fechada, um símbolo de quem viveu muito e sorriu pouco. Era uma felicidade cara, culpada e hereditária, uma melancolia que de alguma forma eu partilhava desde muito moço. Talvez por isso nunca ousei te confrontar sobre o passado, ou mesmo perguntar o que esperava do presente, sonhava para o futuro. Tu eras como um capítulo de uma história maior, o sustentáculo de uma árvore com ramos hoje tão longínquos, indomados, distantes das tuas lições e exemplos mais fundamentais. Hoje, senti como se tua hipotética partida levasse uma parte de mim, arrancada à força pela violência do tempo, tão rude, tão súbito. Era como se, junto de ti, eu soubesse que uma luz em mim também se apagaria, uma fonte de alegrias se secasse, uma nascente de esperança se esgotasse. Saiba, portanto, que tu és minha memória de pequeno, de inocência e de sonho. Me faz querer voltar a ser miúdo, pra caber nos teus braços, grudar nas tuas anáguas para me levar pra brincar entre as plantas, saber do canto dos pássaros, me ensinar a colher a couve, girá-la como só você era capaz, e cortar as folhas tão finas quanto fios de cabelo para então deixar cair numa vasilha tão antiga quanto teu avental desbotado. Eu sempre achei engraçado quando dizia que era fácil, mostrando com paciência o movimento das mãos calosas e paradoxalmente delicadas, como se teu ofício matriarcal te equipasse com todos esses saberes sem o menor esforço.

Tu és prova da minha meninice, me faz querer acordar-te bem cedo ao pé da cama, sussurrando para me alcançar a broa de milho na despensa. E você ia, paciente e lentamente, com os olhos baixos, me olhando correr pela casa em completa graça. Ainda que me doa lembrar disso, também me pego às gargalhadas, lembrando de nossas horas em frente à TV assistindo ao desimportante telejornal. Minha atenção incansável de vigiar teu sono e te ver dormir no sofá, tentando combater as pestanas pesadas de quem só precisava de um pouquinho de paz para cochilar e esperar o próximo dia. Coração sereno, abundante harmonia...

E se o dia seguinte fosse uma quinta-feira, eu sabia que seria a melhor das tardes. Os morangos, as tangerinas e hortaliças encheriam o ar com um frescor único que me faz lembrar da textura do teu vestido, a minha tentativa inócua de decifrar o mundo com o olhar curioso e desavisado de criança, tentando fazer sentido com as intangíveis dinâmicas do teu universo pacato e bucólico. Ainda olho para aqueles dias e tento lembrar de mim, entender você. Tento recordar de cada parte que nos constituía como par, como eram meus finos braços agarrados à tua mão, meu corpo frágil, meu cabelo denso, com o que sonhava, quem me encantava e do que falávamos, se éramos alegres, se éramos tristes... Mas ainda acho um tanto difícil perguntar-te daquele tempo, sobretudo como e por que nós, simplesmente, éramos nós... Eu bem sei que tudo isso não é menosprezo pelo sorriso, mas um obstáculo a mais para sentir, tocar e viver o que há lá fora, para além do que se passa em nossa cabeça. E, como a dualidade de uma maratona, sentir a delícia da chegada, mas a falta de genuíno sentido na atividade em si. Espero que não seja assim contigo.

Se eu pudesse, suplicaria para nunca ir, que fosses como as sequoias, os ciprestes que testemunharam tudo o que a humanidade pode recordar, as mentiras, as verdades, as guerras e as alianças. Que sustentasse tal qual Atlas toda a minha verdade e existência até que eu, com todo o meu egoísmo, também partisse com você. 

Não vá. Te seguro em meu abraço mais apertado, na nossa inversão de força e altura, hoje eu gigante, tu pequenina. Segura em minha mão e vamos à nossa ópera das sextas-feiras, à orquestra de quinta, ao café da tarde para aquecer o peito, caminhar pelo pomar. Só nunca vá, por favor.

Eu te amo.


-A

sábado, setembro 28, 2024

Série Fragmentos - V

                                                                                     Ilustração por Hermano Zenaide

5. Morte de Narciso, voo de Ícaro (ou Le temps détruit tout)


Tendo me tornado — com o passar do tempo — o antropólogo da minha própria experiência, não sinto o menor impulso de depreciar essas almas obsessivas que recolhem cacos de cerâmica, artefatos e utensílios em terras distantes e os organizam a fim de expô-los a nós, para podermos entender melhor a vida dos outros e a nossa própria […].

—  O Museu da Inocência (2008) por Orhan Pamuk, Capítulo 9, p. 43.

 

Hoje pela manhã senti uma paz imensa ao me olhar no espelho. Toquei o rosto com a ponta dos dedos, ainda dormentes pelo frio, e, diferentemente de quando o tocam, não repeli. Deixei-me, pela primeira vez em tempos, saber a textura de minha pele, a curvatura cartunesca do meu nariz e do meu zigomático saltado, que me lembravam a descrição de um personagem das telenovelas. Minhas ideias, no entanto, vagavam longe, na hipótese de que provavelmente ninguém havia me visto verdadeiramente como um conjunto complexo de ideias, concretude viva e pulsante de criatividade. De que eu existo em um plano à parte, sem pudor, sem economias, comunicando ao mundo o que sou, o que sinto, sem meias palavras, sem desvios de rotas, táticas de afeto ou fugas. Eu sou, e, portanto, não me escondo nas esquinas de confidências, não colho de árvores inférteis, infrutíferas, mas me alimento da mais pura potência do que queima e rejeita se apagar, como o sol jovem e alegre das manhãs de Janeiro.

É curioso como somente depois de anos pude contemplar essa crueza dos meus movimentos. Pude me envolver em um abraço forte, sentindo a matéria densa que me compõe, convencendo-me de que eu não era mais — como senti inúmeras vezes no passado — uma corda fina e quebrantável de vida. Pude sentir a materialidade da minha criatura sem a terrível repulsa kafkiana que outrora me fizera evitar os reflexos de espelhos e os consultórios de análise. Vi-me detrás daquele vidro pequeno e retangular como um pêndulo, um artista esperando a hora de entrar no palco, indo de lá para cá, mas com uma paciência e um peso que eu jamais havia experimentado antes. Era natural e leve existir ali, como se por um dia eu pertencesse a este universo e comungasse com ele sem as demandas e medos do mundo. Sem as vergonhas, as inseguranças ou os ódios à flor da pele. Sem as violências da palavra e da carne. Sem as múltiplas paranoias do tédio enjaulado entre paredes tão finas que se escuta o adormecer do vizinho, os amores da jovem ao lado e a fúria incontrolável dos bebês.

Em uma fração de segundos, eu entendi o que é o amor e me entendi enquanto força coesa de átomos e absoluta potência de agir, conatus. Naquela fotografia em movimento, ancorado às minhas bilhões de sinapses, vi-me um tanto nu, sem preconceitos, sem as tantas bússolas morais, axiomas e definições típicos de um cientista pragmático e cético com o rumo do mundo. Habitante de conchas calcárias das mais sólidas, eu sempre soube que viver era como uma máquina a vapor imperfeita, amarrada aos insolúveis nós da física clássica, mantendo-nos em xeque sobre qualquer sonho muito delirante ou impulso de querer ser mais, muito ou melhor. Mas eu, momentaneamente, rejeitei isso. Ali, sozinho e reflexivo, desafiei o pessimismo e quis me equilibrar por um instante na experiência de viver sem dores, sem temores e sem culpa. E sorri.

Porém, no mesmo instante em que essa ideia se formou no espaço liminar da minha distração, também o reducionismo e cinismo foram se dissipando no ar. E como num passe de mágica, recordei de que tão logo você se dá conta da própria história e do curso da vida, percebe que o progresso do tempo, a atividade autômata e quase ininterrupta dos nossos corpos vai nutrir alegrias, desejo, amor, mas também caos, confusão. E, nesse processo, nos aproximar da ebulição das dores, cuspindo o vapor intenso e vulcânico que há de um dia nos fazer parar, seja o coração, as pernas ou as milhares de nanoconexões que montam memórias. A nós, cabe apenas suplicar a Láquesis um pouquinho mais de tempo, um pouquinho mais de calma, que o fio da vida se estique o quanto puder se esticar; para nos oportunizar mais um abraço, mais um olhar e o gosto inviolável de olhares e corpos que se cruzam por mero acaso.

Viver é um tanto Ícaro, um tanto Narciso. Seja na tarefa árdua de mergulhar profundo no eu, de se afogar no terror de amar-se, ou de voar tão alto que lhe queimam as asas, as pestanas e as fantasias. A mim, contudo, seria honrosamente belo saber que vivi, voei, me afoguei e caí. Tão pesado quanto uma rocha, tão leve quanto uma pluma.


-A

segunda-feira, julho 29, 2024

Sísifo-Vampiro


                                                                                                                                      Ilustração por Hermano Zenaide

"I am all in a sea of wonders. I doubt; I fear; I think strange things, which I dare not confess to my own soul."

Drácula (1897) por Bram Stoker, Capítulo 2, p. 27.


Hoje te convidei a entrar, vampiro. Vi nos teus olhos o viço e o chamado de um cão sedento, provando o meu medo como se o sorvesse pelos poros da minha pele pálida em completa ebulição. Emanando do teu rosto, uma aura verde-esmeralda denunciava o veneno das palavras, cantarolando anedotas sobre o que foi e o que poderia ser. Era fascinante ver teu poder de me enredar, conduzir-me na tua valsa e distorcer a noção de tempo, memória e espaço. Se dissesse sim, eu concordaria; se dissesse não, eu negaria resoluta.

Da soleira da minha porta, tua sombra sem contorno se esticava pela sala até desaparecer pontiaguda, varrendo-me com um frio ártico, causando arrepios febris de medo e excitação. Sei que podias ver meus olhos em espirais cartunescas, procurando sentido no teu jogo, a cara de tola em meio ao estúpido movimento da maçaneta, perguntando obediente se querias um copo de café ou um chá. O espaço entre-lábios em minha boca, o som vindo das minhas cordas vocais já trêmulas, eram pistas óbvias do que há de mais involuntário e primitivo nos nossos corpos ainda separados e vestidos. Apesar de dominada, era cômico ver teu esforço ininterrupto para negar tua fome, tua vontade de rasgar o véu que te obriga a ser essa força coesa da natureza, ter de honrar esse contrato de sangue a todo instante em que existe. Um ser centrado, comedido, econômico nas palavras e nas intenções... Apesar de presa fácil, eu me compadeço com tua miséria, sei que existir no plano das ideias e ser somente um ideal de tantos e para tantos é corrosivo, sufocante. Mas por que resumir-se tão somente a esse mero folclore imaterial na imaginação do mundo? Por quê?

Por isso, talvez, você sempre procure a minha morada, o aconchego de um lar que te envolva com o valor de uma lareira e uma sopa quente depois de um dia exaustivo, o justo quinhão do tácito contrato de carne e osso que você assinou por impulso de sonhos de anos atrás. É como uma fuga terapêutica de um mundo que te consome no campo platônico e te usa como um mero fantoche num teatro de bonecos. Antes de existir para si, Sísifo-vampiro, você existe para todos os que te cercam, e só depois é que te autorizam a usufruir do que sobra da tua carne. Tal qual a hóstia de um deus repartido em milhões, trilhões, que todos os dias, em algum lugar da Terra, é afogado em vinho tinto para esconder o gosto amargo na boca. Será que ainda lembro teu gosto? Acho que não...

Sabe, ainda me pergunto por que escolheu ser esse nômade no intangível do mundo. Por que abandonou teu mais belo traço e o trocou por uma imagem que nem mesmo você enxerga nos espelhos e reflexos da vida? Ou, se puder, diga-me, vampiro: quem foi que te esculpiu assim em um dia desimportante? Quem foi que te fez vítima do que há de mais perverso no mundo? Ou será que fostes moldado, talhado até não viver mais nas amarras do tempo? Quem foi que te condenou?

Certa feita, em um desses almanaques baratos que o jornaleiro vira e mexe me empurra por dois tostões, li que nem mesmo o próprio reflexo vês. Mas não sei se por natural cegueira ou se já lhe turvaram tanto a vista que também se foi o sentido. E veja que não te digo isso por viés moral ou apego à tua carne que, paradoxalmente, já me alimentou, mas pela morte da poesia que eu supunha emanar de cada célula que te compõe e te sustenta de pé. Se hoje te alimento, talvez seja porque tua humanidade pristina outrora me saciara também. Tão só a tua revanche, um débito de outra vida que pago nessa.

Encarando-te assim na verve dos meus dias mais felizes, sem esperar visita, não sei decerto se te devo alguma parcela de gratidão ou se deveria nutrir culpa. Na dança e nos papéis que interpretamos no enredo dos outros, alguns vivem para se tornarem vilões, lembranças de um tempo calmo, ou ambos. Por isso, estico o pulso já exaurido de qualquer cuidado e evito qualquer troca de palavras. Na contracena de vida e morte, cumpro minha parte do trato, da peça. Descem as cortinas, saem os amores, entram os fantasmas. E de novo, de novo, até um novo e inalcançável cume.

Enquanto te passo o lenço para aparar os excessos que agora gotejam em meu tapete quase impecável, vejo tuas presas se enterrarem fundo em minha carne, já tão fina quanto uma folha de hortaliça. A tua respiração ofegante soprando em meu pulso um fluxo quase imperceptível de ar, acompanhado por um frio na espinha. Era como se a alegria e a ternura fossem deixando meu peito, drenadas com uma calma cirúrgica, sem ansiedades, sem receios, lentamente. Meus músculos cedem como se separados da minha própria razão. Meus olhos embotados encaram teu apetite inconsequente, abraçando a minha nulidade ao sequer fazer contato no olhar. Eram movimentos orquestrados de quem já estivera ali um milhão de vezes. E estivera. Para a minha tardia realização de que se te matei e exauri num tempo, há de fazê-lo comigo também n'outro.

Confesso que jamais imaginei que acabaria assim, sendo apenas um acessório no teu carrossel de desejos, o mais puro estado de matéria, já nem tão animada assim. Em meus últimos segundos, ainda pude ver-te limpar os lábios com os polegares curvados, formando com o sangue um estúpido e abstrato coração, irônicos lábios de amor e morte. Um ajuste na gravata, um pigarreio meio ensaiado e a delicadeza de pousar meu corpo frágil no sofá da sala, como se em um cochilo vespertino ou uma boneca de pano.

Ali, naquele instante, eu sabia que, como Sísifo, estávamos condenados a um ciclo eterno: morrer e renascer na fome imortal do desejo, empurrando a pedra do nosso tormento nas voltas de um tempo sem medida, oco, vazio.


-A

sexta-feira, setembro 08, 2023

Série Fragmentos - IV


4. Sobre o medo de escrever (ou Da cegueira)

"(...) Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem."

Ensaio Sobre a Cegueira por José Saramago (1995)


Vagando no trem de Fundo Céu, lembrei-me de Borges e sua cegueira. As costas arqueadas na cadeira de balanço, o café frio na mesa de canto, e sua voz rouca ditando sonhos, narrando causos e parágrafos sem que pudesse vê-los no papel. Para ele, escrever era sonoro, e seu confidente um diapasão de ideias, canalizando seu pulso criativo que passava por outras vias sensoriais para além da visão. Como seria viver nesse mundo, onde os pensamentos vagam altos e públicos naquilo que deveria ser de essência visual e íntima? Como a escuridão mutava, retorcia suas reflexões?

Estremeci de medo ao imaginar-me assim, questionando se eu teria a coragem de dividir minhas ideias cruas com um confidente, compartilhar do nascedouro as minhas intimidades e no olho d'água deixar brotar as inquietudes da alma. Para ele, bastaria só a ideia pujante para ferir a pele, atrair o olhar, mover o amor e infectar com ideias outros mortais? E se bastasse, o que fez o cego Borges quando lhe faltaram ouvidos munidos de penas? Quando na bolsa lhe escapou o punção metálico? Esqueceu? Deixou escapar?

Em meu microcosmo amador e desimportante, palavras nascem como sentimento, já vêem como que prontas para o mundo, ansiosas, não podem esperar muito até que ganhem forma no papel... E nesse pulso de existir me fazem refém para torná-las reais, até que as enxugo, retorço e moldo para que sosseguem sem muito me maltratar. Às vezes assaltam-me no trabalho, no banho pela manhã ou nas cobertas com minha senhora. E, no processo, perco-me, espeto o dedo na curiosidade de querer saber um pouco mais, de dar forma a um cubo disforme de argila virgem como um Rodin clandestino. Para cada palavra que escrevo, uma palavra a mais que me define, um pensamento a menos que faço segredo, um passo mais perto da minha consciência. Mas nunca esqueço, nunca ignoro o chamado da ideia. E de novo, pergunto-me o que o fez o cego Borges quando suas palavras o arrebataram num dia de solidão, no calar da noite, ou em um daqueles instantes de ansiedade e pesar.Talvez seja aí onde moram os fantasmas.

Sempre pensei que a beleza de escrever caminha lado a lado com a "desbeleza" de revelar-se. É como fazer sua sessão de terapia numa praça pública e esperar que as pessoas ignorem essa loucura ou admirem as suas incongruências, suas sandices. Portanto hoje me autorizo o mistério, largo a caneta e aceito perder tantas ideias quanto é possível perder, deixo escapar dúzias de parágrafos, sem me punir pela ânsia de traduzir qualquer sentimento muito íntimo. Serei o escritor sem pena, a aberração, Borges em seu esquecimento mais tolo na ida ao mercado. Apesar de um ser de muita coragem, sou também um ser de muito medo, um paradoxo. 

No próximo empenho prometo contar-lhes uma ficção, uma mentira que me ocorrer na volta pra casa, espiando transeuntes ou pensando na assustadora previsão de tempos mais sombrios. Algo menos meu e mais teu. 


-A


A imagem foi gentilmente dedicada ao texto por Hermano Zenaide, que publica desenhos em sua página no Twitter: https://twitter.com/hermanozenaide

sábado, agosto 12, 2023

Série Fragmentos - III

 


3. Uma manhã nas florestas em que meditei observando a despedida de uma raposa.


"(...) Porque cada um de vós tem a sua própria morte, transporta-a consigo num lugar secreto desde que nasceu, ela pertence-te, tu pertences-lhe, E os animais, e os vegetais, Suponho que com eles se passará o mesmo, Cada qual com a sua morte, Assim é, Então, as mortes são muitas, tantas como os seres vivos que existiram, existem e existirão (...)"

  As Intermitências da Morte por José Saramago (2005)
 

Deixo aqui de pronto, nua e crua, a triste curiosidade que me ocorreu ao ver partir tantos e tantos pequenos animais que encontro nas florestas onde caminho. Quando acometidos por alguma chaga, alguma dor, eles recolhem-se em ninhos de espinhos e arbustos a esperar sua hora de partida, sempre enroscados em arvoretas, sozinhos, miúdos, encolhidos, seguros... É uma cena sem choro, sem raiva, sem medo ou injúria, mas que eu, irredutivelmente humano, atribuía lamento e pesar.

Ainda é inconcebível para minha estreita e limitada inteligência imaginar que a natureza coube de selecionar para todos os seres, menos para nós, o não-luto, a não-despedida, pois que somos - dirá o leitor - esse vórtex de culpa que não vai e não deixa ir. Para nós, a memória é como o petróleo do tempo, o negrume turvo que afia as culpas e perece as belezas. E para além do não-luto somos vítimas de um perverso esquecimento, máquinas de desmemoriar, brutas rochas de instantes, de fluxos vazios e imprecisos de quilojoules tentando ordenar o caos, mas que cedem ao impermanente rio que corre e dilui o que foi, e até o que é agora, hoje, teu. Neurônios são por natureza engenhosos, sádicos e criativos. Centelhas que acendem sem motivos, desligam sem aviso, motores que nos dirigem como vagalumes numa noite sem luar. Figuras enlutadas em trânsito, propósitos buscando iguais.

Olhando a despedida de uma raposa, vi que a pureza dos animais mora na impossibilidade de interpretar a memória e dar sentido a ela. Não fazem velórios, não marcam datas... Vivem, protegem, reúnem-se e educam-se sem que isso seja um ritual, sem que seja uma norma, um grande evento. São impulsos de um sagrado misterioso e perpétuo... Distante da sua morada, ela protegia os seus, afastava os predadores dos pequenos e preservava seu miúdo corpo; sem sustos, sem arrependimentos, e em absoluta graça. Ainda que eu recebesse uma centena de vezes aquela mesma lição, não saberia dizer o que aqueles olhos serenos me contavam. O impulso de entender não superou a vontade de partir, de recuar.



-A


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quinta-feira, junho 22, 2023

Série Fragmentos - II


2. Memória de um menino, charada para um adulto


"(...) El tiempo es la sustancia de que estoy hecho. El tiempo es un río que me arrebata, pero yo soy el río; es un tigre que me destroza, pero yo soy el tigre; es un fuego que me consume, pero yo soy el fuego. El mundo, desgraciadamente, es real; yo, desgraciadamente, soy Borges."

Nueva refutación del tiempo por Jorge Luis Borges en Otras inquisiciones (1952)


Lembro de visitar uma amiga quando garoto e, intrigado, observá-la vigiar o tempo nervosamente. Na sala havia três relógios: o seu de pulso, o de cordas na parede da cozinha e o andar crescentemente nervoso de sua mãe de um lado a outro, marcando um tic-tac paralelo, informal. Mais preciso que os ponteiros eram os pés de tamanco-madeira que golpeavam o tablado oco que dava para o porão. A fúria nos pés da senhora faziam levantar uma fina camada de poeira que dançava quase que se apoiando nos poucos raios de sol que cruzavam as feias cortinas bordadas, que já passavam dos 40, talvez 50 anos. Como um badalar de sinos, o som abafado do caminhar da velha chocava-se no tablado de tatajuba e se combinava ao coração pesado no meu peito, marcando os passos e meus respiros. O silêncio obsceno da figura amarga e autoritária parecia aguardar o deslize da presa e revelava qualquer coisa de diversão ali. Não soube decifrar se ela esperava uma resposta ou um choro - que é uma resposta menos verbal e mais humana se comparado a um mero jogo de palavras ou um pedido de desculpas, se é que um era devido.

Hoje, ao revisitar a cena, concluo que quando criança tudo é demais, tudo é verdadeiramente grave, súbito e delicioso. As dimensões da nossa experiência de vida, nossa condição humana, são dobradas, quadruplicadas, tanto em tempero quanto em quantidade. Essa sensação, suponho, só passa depois dos 40, quando já se viveu e viu o suficiente, e a surpresa e as emergências vão se decompondo em micro ou nanopulsos de responsabilidade e compromisso. Algo que eu secretamente chamo de homeopatia da vida e das cores. Onde um erro é bem menos fatal que antes, e uma mágoa é somente uma mágoa, há de voltar, há de passar. Quando deixamos a meninice, somos veneno e antídoto caminhando lado a lado.

Até hoje eu me agarro a essa memória, tentando lembrar o que fizera de errado; se fora um vaso derrubado, um descuido com a louça, ou se chegamos para além do horário combinado. Eu talvez jamais descubra o porquê de seus lábios mordidos, dos olhos fugidios e dos ombros baixos na ausência de culpa. Ou o motivo de tamanha vigia do tempo... Certa hora ficou tarde - minha mãe provavelmente esperava por mim, embora eu não tivesse pista do seu humor - e eu tive de deixá-la ali, meio contrariado com o que parecia ser meu maior ato de covardia. Apesar de minha fuga e dessa charada travestida de memória, eu desejei intensamente que você ficasse bem e em paz, velha amiga.


- A



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quarta-feira, maio 31, 2023

Série Fragmentos - I

1.  Me deixa em paz (ou O dia em que acordei pensando nas Minas Gerais)


"La soledad le había seleccionado los recuerdos, y había incinerado los entorpecedores montones de basura nostálgica que la vida había acumulado en su corazón, y había purificado, magnificado y eternizado los otros, los más amargos" 

Cien años de soledad por Gabriel García Márquez, 1967.


Evitar a dor, como Alaíde Costa advertia, é impossível. E nos embalos dessa poesia eu refletia sobre a dor que causam o tempo e a idade. Nem mesmo concluí meus 30 anos e já me palpita o coração pelo medo da potência dos minutos que me escorrem as mãos. Penso na minha vontade incontida de agarrá-lo pela gola da camisa e de pedir pra que ele pare. Pare pra que eu desfrute do sorriso de minha mãe, para que eu possa admirar mesmo de longe a força dos meus pais, para que eu me encante com a juventude dos meus irmãos e com o desejo inesgotável da minha menina... Pare para que eu não me dissolva no meu pequeno apartamento, arranhando as paredes de agonia, para que o relógio se sossegue manso, que enfim sustente-me no instante, na minha paz de um domingo preparando um bom almoço, acompanhado de uma cerveja e um bom som. Pare para que eu consiga um pulso de reflexão sobre meus dias, meu passado, presente e futuro, num breve silêncio contemplativo pra saber se eu aprendi algo, se cresci, se melhorei, se abandonei velhos hábitos e vivi. Não é o medo da partida, mas o desejo puro, como de respirar fundo um ar novo, talvez inédito. Medo de nunca experimentar esse não-tempo, de não poder participar do aterrorizante e lindo fenômeno no qual ele, o tempo, por uma breve distração, esqueça de passar. Medo de jamais poder olhá-lo em retrospectiva e entender-me sem que nesse processo eu o veja passar e o consuma como em outra tarefa qualquer. Medo de que o tempo seja uma força que nos impulsiona somente para frente, e que o que passou seja somente uma fantasia dos antigos e dos arrependidos.

Lembrar é, intrinsicamente, um ofício de quem está só, ou dos que temem viver assim.

- A


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