"Hasta lo inesperado acaba en costumbre cuando se ha aprendido a soportar."
Todos los fuegos el fuego por Julio Cortázar (1966)
Divisava então o espírito
Que o hipnótico vestido ornava
No topo da cabeça desciam os fios.
Pensava ser sangue, pensava ser raiva
Timidez até, mas era lava...
A brasa imperativa escorria-lhe,
ora leve, ora bruta, pelos ombros. Eram ombros fugidios, nobres, como se o
tempo tecesse voltas mais longas em volta de ti e retesasse a corrente dos
segundos, minutos e das horas. Um maneirismo curioso dos olhos fazia-na mais
notável quando sem a intenção encontrava os meus à distância e recolhia-os ao
copo e à vista. Não tinha porquê – eu pensava com os cubos de gelo a derreter
em meu copo... Doía-me a fuga!
Apesar de já bem moço, era de
gênio dócil, não haveria de fazer-lhe mal nenhum. Justificaria essa sentença
por não ter sido marcado pela cicatriz da rudeza ou da impulsão, por isso
pacientemente brincava de medir os passos até a ponta dos teus dedos miúdos,
brancos como a pele – e de me ver ensaiar algumas palavras de mais ação. Dado o
tempo que amadureceu essa narrativa, decerto me esqueci de guardar nos palácios
da memória que foi que dissera para prender-lhe a atenção. Não precisou força
para que o oposto ocorresse, pois – regra feita e antiga – não se brinca com a
tez e a temperatura dos cabelos. Arderam-me as bochechas logo que pousou em mim
os apertados olhos em um sorriso silencioso. E veja tu que não sou de causo ou
anedota. O sorriso viera de presente (!), gratuito e sem medo. A lava seguia
escorrendo pelas mãos, entre os dedos, o que não escondia de fato a minha
surpresa.
O som e a multidão corroíam os
tímpanos e despertavam os pudores. Era eu a presa ou a raposa? Num susto,
lembro-me, sugeri a fuga ao primeiro badalar da madrugada. Eu já com os
sentidos marcados, desejando silenciosamente que a boca rubi pousasse serena
sobre a minha. E o fez, como se não fosse preciso cerimônia ou convencimento...
Tímida e lentamente como eu desejei que fosse, provando-lhe a eletricidade que
agora inundava meu rosto corado de intenções. Era uma espécie de confissão ou
teste, o qual passara sem entender a razão. Minha mente inebriada de ideias
muito à frente do que aquele tempo nos oferecia, travando uma batalha intensa
com a necessidade de controlar os arrepios que me indicavam aonde ir. Era
tempo, mas talvez retrato. Acalma-te.
Bem perto, tomava-lhe as mechas
ainda sem a familiaridade que desejava, organizando - enquanto sentia a
respiração misturada à minha - os fios mais rebeldes que se fundiam aos meus.
Sentia-os fazerem cócegas pelo meu corpo, aventurando-se atrás das orelhas, braços
e pescoço. Eram levados pela pouca brisa para conversar com os meus curtos e
discretos como mandava o ofício de professor. Sabia já de pronto que talvez
fosses tu a flor da moita, ou alguma ninfa, sinal de sorte. Havia certo tempo
que eu não sentia os músculos cederem assim, pouco rijos; não diria frouxos
porque não cai bem, mas amenos, calmos, desalarmados. Era eu já um corpo
celeste em órbita, um errante planeta como o de Trier, porém sem a
responsabilidade de destruir, apenas de criar à luz refletida da íris mais viva
que qualquer melanócito se pôs a colorir. Os olhos não fitavam somente a minha
face, mas a minha história, despiam-me sem que eu tivesse escolha, viam-me
através e sorriam de volta enquanto as mãos corriam as costas já um pouco agitadas.
Devia ser uma maldição e uma benção carregar aqueles orbes, quanto poder...
Os copos tilintavam no ritmo dos
corpos – ou seria o inverso? – enquanto suprimidas minhas gargalhadas se
abafavam na sua pele, a qual desprendia uma fragrância nova e pura que eu
começava a conhecer. Tínhamos a cadência da perdição, e eu precisava não achar
saída. A noite avançava fria sobre aquela miríade de prazeres, enquanto no
abrigo abaixo da escada eu a tinha hipnotizada em minhas mãos e hipnotizava-me
também junto aos padrões repetidos do vestido estampado que, lisérgico, eu
projetava arrancar devagar. Olhava a renda a tentar organizar algumas ideias,
porém cada pequeno movimento – por mais suave e frugal que fosse – roubava
minha concentração. Cada um contribuía um pouco mais para a confusão dos
desenhos, convidando-me a uma breve e atrevida alucinação. Queria poder
materializá-los mais uma vez para que entendesse como eles me encaravam; deviam
ser polígonos ou fractais monocromáticos, alinhados como os astros o fizeram
naquela noite impossível, um desenlace de moedas lançadas, dados e acasos.
Havia, claro, retumbante na minha
mente aquela canção que brincava sobre dez decisões inteiras que moldam nossa
vida, aquela que caçoa da pouca consciência que temos da maioria delas, talvez cinco...
Eu temia que aquela fosse uma em meio a essa estranha estatística, mas era
demais para aquele sopro de tempo. Desejo, assim, de forma isolada e súbita,
sempre me sai como uma pequena alegria e uma pequena morte; um paradoxo que
entre os dedos eu tento agarrar enquanto teimoso escapa pelos dedos em tom de
despedida. E talvez fosse a hora. Chamavam-nos à porta, hora de ir, já o
glamour, as gargalhadas e a música silenciaram-se sem que pudesse notar –
decerto efeito das hipnoses vindas do vestido a embaralhar a razão.
Desconectar-me daquele templo
pareceu-me um pecado – ainda que fosse herege. Recuar daquele impulso era a
semente, a essência dos erros mais infantis... O rosto fumegava ao compasso dos
tecidos, derme, epiderme e alma... As palavras falharam em ganhar vida, e nessa
falta nasceu este escrito, vontade de redimir o desconcerto do relato. Se fosse
hora de partir, ficaria enraizado ao instante, sincronizando minha respiração e
permitindo que cada pensamento derretesse em contato com os fios de magma. Na
saída, como uma surpresa, um presente, ela pousou brincalhona no estofado já um
pouco envelhecido do carro que nos esperava sob o sereno. As gotículas
desenharam na nossa ausência centenas de pequenas bolhas de água sobre a
lataria alva como a pele da dama. No caminho de casa, eu pisava gentilmente o
acelerador, fazendo durar cada fração de milha. Temi, porém, que adormecesse,
mas ela teimou em me vigiar na direção, colecionando minhas dezenas de
expressões a confessar um prazer discreto e ingênuo de tê-la entregue à
companhia. No alto falante um som delicado começou com Tomoko Aran ou Taeko
Onuki, que durou pouco até eu desejar vê-la espreguiçar sobre os lençóis
brancos. Fuzilou-me a lembrança de que por descuido ou receio havia esquecido
de estica-los. Acelerei; junto a uma enorme antecipação por ver os cabelos
tingirem rubro a branquidão quase estéril do aposento, lembrando-me das
anedóticas e risíveis críticas dos amigos. Jamais saberiam desse pequeno
prazer, o quanto ele me remetia a um canvas vivo e imaculado, o qual eu jamais
pararia de contemplar se me fosse assim dada a chance de escolher aquela que
ali deitaria.
A complexa rede, a aquarela de
pele, corpo e palavras me fizeram absorto em prová-la. Ainda que parcialmente sinestésico,
o paladar torna as experiências mais intensas, dado que junto dele a audição de
um prazer secreto se fazia desvendado ali mesmo enquanto eu saboreava devagar
as suas belezas. Talvez fosse um ponto fraco ou uma virtude que eu descobria,
ambos sendo um privilégio construído às pressas mesmo quando me indagava sobre
meu cansaço de fazê-la estremecer as pernas. Não tinha tantas possibilidades
assim, era um estranho vício que reverberava na história, o risco somado ao
impulso, à pulsão de fazer-nos um, participar e sentir surgir eruptivo de sua
voz, músculos, olhos e pele o que eu costumava brincar de supernova –
cientificismo até nessas danças. Erupção que somente o vermelho mais puro de um
estudo de cores saberia explicar. Era linda, era bela, palavras pouco fiéis à
imagem que tento aqui provocar. Linda e bela ou outro adjetivo remetem a figura
estática e dada à contemplação, inerte. O que eu via e tocava era apoteótico - e
não se espante sobre o divino – eu poderia ficar horas contracenando com ela no
ninho que guardava as brasas a chamuscar o linho, formando curiosas voltas e
desenhos que eu escolhi conhecer. Embaraço, não o de vergonha, mas o físico. Fio
sobre fio, corpo sobre corpo, e força. Manifesto do desejo, menos cálido
talvez, mas a própria falta de conhecimento dos atalhos da dama fez-me
genuinamente mais ávido a versar-me nas letras de seu corpo. A esse ponto eu me
queimava nas madeixas rubis e a deixava costurar-se no encontro dos móveis até
se aquietar num prazer que apenas à vista eu poderia partilhar. Não havia
pressa, somente uma natural ansiedade por tentar encontrar um final, que ali
era tão improvável quanto nomear as personagens de um romance russo. Ela não
era só um caleidoscópio a mudar em minhas mãos a cada gesto, mas um fractal
orgânico de pensamentos, sensações e prazeres, onde quanto mais eu acessava
mais me perdia; acompanhado de suas deliciosas gargalhadas de êxtase e sadismo a
me ver num falso e imaginário controle – tão logo arrebatado pela força de suas
pernas a me manter ali subjugado aos seus caprichos cruéis.
Sua boca já se tingia de carmim
quando notei que por impulso ela mordia os lábios tão forte que superava a
razão de se frear. Pouco a pouco – e isso eu jamais esqueceria – ela esculpia
uma cicatriz profunda que eu pude sentir – e aqui eu faço uma pequena menção ao
ritual do cisco de Nabokov - pois como num beijo eu quis sentir com a ponta da
minha língua o pequeno corte derivado de seu impaciente deleite. Era poético,
eu dissera, embora pense ser o único a vê-la assim. Também não creio haver
humano capaz de pensar isso como transparentes e subjetivas poesias, dado que
um ato tão instintivo e já desprovido de brilho, raramente guarda essas
pequenas luzes. E talvez não haja precedentes que narrem história gêmea à minha
a título de comparação. Mas isso eu não saberia dizer por certo.
Enfim, voltemos. Sua boca pulsava ao ranger dos
dentes, enquanto a minha tentava sarar a dor advinda do gozo. Ela se mordia e
trocava a ordem dos gestos, como se quisesse me contar de um delírio qualquer.
O vestido pousava fora da cena e eu me segurava para não olhar, competindo com
a luz e sombra refletidos na pele da moça, tudo isso sincronizado com o calor
dos cabelos e discretos pelos, queimando-me e fazendo-me senti-la úmida,
ardente e sensível a qualquer micromovimento que eu arriscava. Sua voz
balbuciava lentamente ao meu ouvido enquanto eu pousava a cabeça nos ombros
para inundar os tímpanos com suas confusões. Os lábios ainda carmim se
escondiam entre os dentes a mordê-los e enterrá-los num jogo dialético de um
apetite inefável.
Eu já ofegava, ansioso e refém de
sentimentos que agora nem a idade me ajudaria a descrever. Assustei-me um pouco
com a cadência de dois em um só, mas talvez fosse só a euforia de tudo
acontecendo de novo. E de novo. A essência da descoberta, o sorriso sádico que
escapa às aparências, a mão que encontra um rosto rebelde, ironicamente com
ternura e volúpia.
Ao final, quando a virtual meia
noite se fez concreta, os raios de sol de um meio-dia veranil irrompiam da
janela. A consciência despertava-nos daquele fragmento de tempo, presente das
incalculáveis coincidências. Ambos trêmulos, eu já me perguntava sobre como iria
dirigir até a casa da pequena com os sentidos tão consumidos pelas marcas que
ela deixara. Não podia insistir, regra simples da modernidade, para que
repousasse ali, embora não só do simples prazer meu riso frouxo se fazia ali
evidente no rosto, mas a chance de tê-la aninhada nos meus ombros também. Como
na ida, acelerei o mais devagar que pude para levá-la até sua casa. Era justa a
troca que eu propunha, inconsciente do risco de esperar mais ouro daquele dia,
mais do que o acaso me presenteara sem a devida retribuição de minha parte.
Um beijo longo selou sua
despedida, enquanto uma movimentação estranha no jardim agitou-a na descida do
automóvel. Os olhos claros me fitaram uma última vez, suficiente para que eu
reafirmasse a realidade que de forma juvenil eu tateava.
Na minha volta para casa, a cena
se repetia... Os móveis se liquefazendo, outros emergindo, uma tensão que uma
faca seria capaz de fatiar... Até que um inocente e puro sono me arrebatou como
se eu imergisse num oceano imponderável, escuro. Na estante, ao lado, o
telefone me chamava minutos depois sem sequer respeitar minha boba e particular
alegria de um amante. Atendi. Uma voz rouca, tão velha quanto o tempo pode
alcançar, me achou ainda meio torpe procurando os óculos. Uma voz masculina
arrastada que eu reconheci logo, a qual me fez baixar os olhos em reprovação.
Não esperava isso tão cedo.
_ Sr. A? Doutor Bauman falando.
Precisamos conversar. De súbito me alarmei com aquela voz, pondo-me de pé,
olhos abertos e um pequeno suspiro de consentimento correu minha garganta ainda
queimada pelas centelhas da noite passada.
_ Ah, naturalmente. - respondi,
entendendo meu papel – vou me vestir. Não cabia contestação. As coisas eram
como tinham de ser. E havia também aquela velha frase de que as coisas
acontecem por alguma razão. Coisa que eu sempre rechacei sem dar dois dedos de
prosa.
O som oco do telefone se
encaixando na alavanca seguiu retumbando na minha cabeça por alguns minutos.
Sorri com certa ironia, mas guardei as vozes da noite nas salas mais
interessantes do palácio, antes que meu compromisso varresse dali qualquer
vestígio. Dr. Bauman não iria se zangar com um pequeno atraso e um deslize como
esse. Não é assim que terapeutas operam. Cheguei ao consultório com duas
batidas na porta, ao que a criatura frágil e antiga me atendeu. Olhou-me nos
olhos com certa compaixão e crítica, pondo de lado as cerimônias que temos no
começo de cada sessão. Eu sabia que a tarde ali seria demorada, pois havia
muito por dizer. E precisava. A máquina de café apitou um som agudo
avisando-nos de que o elixir que nos mantinha acordados havia ficado pronto. O
velho me passou a xícara que segurava com as mãos trêmulas, a fumaça me alertando
do quão quente estava. Num longo suspiro ele iniciou sem que eu antes pudesse
me preparar. Copiei o suspiro como se elaborasse as ideias com ele.
_ Não há mistérios. – eu disse
logo - Aconteceu mais uma vez.
A imagem foi gentilmente dedicada ao texto por Hermano Zenaide, que publica desenhos e opiniões em sua página no Twitter: https://twitter.com/hermanozenaide