quarta-feira, outubro 01, 2025

Vendeta


"Mas duas pessoas não se equilibram muito tempo lado a lado, cada qual com seu silêncio; um dos silêncios acaba sugando o outro, e foi quando me voltei para ela, que de mim não se apercebia. Segui observando seu silêncio, decerto mais profundo que o meu, e de algum modo mais silencioso. E assim permanecemos outra meia hora, ela dentro de si e eu imerso no silêncio dela."

—  Budapeste (2003) por Chico Buarque de Hollanda (p. 61) 


É curioso como te ver nos meus sonhos me causa uma excitação tal qual aquela de quando as alças e amarras caem dos teus ombros, ou quando me empresta parte de ti cedida à luz para uma fotografia: um olhar que vem de baixo, uma quase-súplica de desejo. Nas minhas fantasias oníricas, sei da exata cor do teu vestido, da textura linda dos teus cabelos castanhos cintilando loiro ao sol e do teu torto-incorrigível humor matutino... Nessas horas, dispenso ajuda da minha memória para perfeitamente me pôr contigo no teu quarto em um dia atípico e ouvir os teus sussurros no meu ouvido seguido de um golpe da tua língua úmida no meu pescoço ainda distraído demais para essas carícias.

Sabe, provável que você não entenda – e talvez jamais entenderá – mas há poucos prazeres maiores do que acordar ao teu lado, preparar teu café forte, falar sobre o que um dia sonhamos ser, dos nossos mais sinceros desejos de um tempo já tão distante. Em nossas conversas de travesseiro, dissertamos sobre a peça que o destino nos pregou naquele dia meio esquecido de dezembro, da falha sem culpa dos destinos cruzados e da minha impulsividade quase irresponsável disfarçada de intuição. Nesse teatro adormecido, porém, teu brilho é ligeiramente mais apagado do que me lembro (se é que me lembro), mas ainda capturo bem os teus traços mais belos, teu cuidado com os outros, um sorriso sincero, as mãos mais lindas que já pousaram sobre mim...

Hoje, quando já as costas doem de carregar o peso de um par de tristezas, vejo que não sou assim tão talhado para o amor comum como tu és. A vida não me esculpiu, como esculpiu a ti, na plena condição de querê-lo, realizá-lo e partilhá-lo de pronto. E, perplexo, confesso meu encanto de ver como a ti parece tão natural, tão instintivo e simples esse sentimento. Como se manifesta leve e verdadeiro no teu despertar, como é facilmente identificável, seguro e fluido no teu olhar e no de quem hoje colhe teus sabores. É como se minha falta de traquejo tenha me feito somente poeta de romances-mil, testemunha da tua existência, mas nunca “sentidor” de fato do atordoante e transformador choque de carinho, desejo e propósito. Eu sou brisa que passa, onda que leva. Tu és inabalável mourão, estaca invencível no cais.

A caminho do trabalho ou nos finais de semana à beira-mar, sento-me com meu livro nas mãos e, na passagem do vento leve e das incontáveis páginas que viro sem muito entusiasmo, noto as mais lindas e diversas formas de outros amores. Baixos, altos, brincalhões, protetores, gentis, intensos, velhos e jovens, todos à sua maneira uma versão, um ideal do que eu um dia quis ser e me convencia de que saberia conduzir no ato, improviso de um sábio veterano, irreverência de uma alma tranquila... Mas creio que meu papel aqui nesse tempo seja tão só de trovador, cronista de histórias vividas, bardo de canções diversas, admirador do que nossa condição humana busca até que parta de nós a força de despertar e ir à luta. Sou não a prova viva, mas observador da sua manifestação em corações mais leves, mais afeitos à sua chegada, sem esperar ou pedir licença. Como o teu.

Nesta estranha jornada, vivo o fervor dos amores incompletos, separados por oceanos intransponíveis, paixões fustigantes e assimétricas; são ensaios imperfeitos que preenchem uma lacuna tão efêmera quanto o outrora narrado sorriso da moça. De modo que minhas ideações estão somente no campo da memória, são as marcas das mãos contra a pele, ora brutas ora amáveis, dos beijos que ficam e dos olhares denunciando perversões, mas que se despedem  cedo pela senda que leva a vida, pela determinística natureza que se impõe generosa e imperativa. Assim, esperançoso e um tanto aflito, sacio minha sede na liquidez que escorre pelas frestas das minhas mãos. Dedos que passeavam serenos pelos teus cabelos, boca e pescoço e que agora cuidam de escrever essa nota apressada.

Engraçado que hoje, depois de acordar do meu mais recente sonho, me veio uma ideia, algo que sempre acreditei existir, mas que agora tomou alguma forma e se traduziu em palavra. Pensei haver uma espécie de misterioso oblívio na tua natureza feminina. Um dispositivo que te impede de ver claramente o que há de mágico, insolúvel e oculto na tua existência. Um sagrado e inexplicável sentimento que eu tive o privilégio de dividir, algo que ultrapassa a mera identidade, o mero jeito de ser. São trilhões de qualias que nos afastam, tal qual água e vinho, algo impossível de explicar.

Eu falaria mais de veneração aqui nesse escrito, mas já expus demais sobre esse tema antes. E veja que não pretendo esconder toda a tensão que me traz imaginar como será o dia em que eu vibrarei de novo ao som da tua voz. Secretamente, eu ensaio nossos passos e tento achar em cada simulação alguma âncora para retornar sempre que eu quiser – às vezes teu pijama, às vezes teu gosto a escorrer na minha boca ou uma risada nervosa seguida de um suspiro. São dias difíceis aqueles em que passo sem trocar palavra, sem saber do teu fim, pois ainda há aquele medo infantil de um dia você não mais existir. E sonhar, sem dúvida, faz todo o cenário mudar. Seja alimentando meu irremediável desejo de te ver mordiscando a língua que toca teus lábios superiores ou de afastar o mundo real apertando meus olhos para me manter alheio ao meu entorno um tanto vazio de sentido. São duas cenas conjugadas: sendo a tua a mais linda tentando sobrepor a minha mais acinzentada e esquecível.

       Ainda que eu tenha a intenção de fazer com que veja essas cenas concretas se montando pra ti, eu entenderia se algo aqui não se encaixasse. Pois que para adicionar cada palavra, sou mais um falho e pragmático arquiteto parnasiano, escaramuçando entre defeitos e métricas, do que verdadeiro escritor ou cronista. Algo que uns chamam idealista; outros, romântico-démodé


-A

quinta-feira, agosto 07, 2025

Série Fragmentos - VII

7. Desbeleza


"Esperança para mim era adiamento. Eu nunca havia deixado minha alma livre, e me havia organizado depressa em pessoa porque é arriscado demais perder-se a forma. Mas vejo agora o que na verdade me acontecia: eu tinha tão pouca fé que havia inventado apenas o futuro (...)"

—  A Paixão Segundo G.H. (1964) por Clarice Lispector (p. 146)

 

        Pequena treva me anuviou os pensamentos na ida à feira aquele dia. Como de hábito, olhei a moça de saia rodada e tentei um sorriso simpático pra dissolver o nervoso da energia paleolítica que me rodeava. Desconsertada, ela deu de volta o gesto, como que pra assegurar que meu olhar não roubasse dela a calma e a segurança, enquanto punha no cesto as frutas da banca do Baiano. Os sons e cheiros de ansiedade, pressa e calor saturavam o ar e me transportavam para a infância ociosa, preso ao vestido de minha avó, decifrando o mundo com o olhar curioso e desavisado. Naquele dia, porém, foi diferente. E, ao invés de nostalgia, algo de triste, diria, me afastou da ternura das minhas memórias e do quase-flerte sem sucesso. Quisera eu ter aquela aura de novidade, inspirar a curiosidade mesmo que à distância, quando já as circunstâncias desfavorecem um “oi”, ou talvez um “você vem?”. As próprias frutas eram talvez mais magnéticas que a minha tosca presença ali, diante de uns poucos transeuntes, e talvez, inocentemente, eu quisesse experimentar as tensões dessas cordas sociais, ora bambas, ora firmes, em que eu me equilibrava com certa ingenuidade.

        Vê-la assim me trouxe à mente uma palavra nova, uma ideia que não sei decerto se existiu em outras literaturas ou debates mais elevados. Naquele dia, eu entendi o que era desbeleza: o desejo sem a profunda admiração; a própria possibilidade de vários quereres, vazia de boas novas, limitada à forma e tão rasa quanto a lâmina d’água de uma poça na calçada. Não saberia explicar esse conceito porque sou eu mesmo um pouco culpado por ter nutrido tanto desejo onde havia muita desbeleza — um impulso da natureza, um mero cacoete de moleque, o irresponsável e irresistível prazer de ter e não dominar. De olhar e não tocar. Saborear sem o puro gosto do objeto em si, mediado por uma interface estéril e moderna demais para o que eu de fato queria. A desbeleza é, propositalmente, uma forma de o mundo girar engrenagens e zombar da nossa pretensão de ser pura e simplesmente poesia. Pura e simplesmente coerência, gerência sobre os amores e as dores, ou domínio de um impulso consciente, estruturado. Assim, a desbeleza cresce, ganha a mente e impõe neblina sobre os pensamentos. É quase que obra do caos — um emaranhado de maus circuitos, tolos neurônios e vícios hedonistas.

        Enquanto eu me perdia nessas ideias, tentando construir alguma tese imperfeita, perguntei-me se era eu capaz de romper esses ciclos, amar com ares platônicos, viver uma vida spinoziana sem me distrair com as dores que vêm das almas confusas e tristes que vagam no espaço entre minha consciência e minha saudade. Amar assim, sem desbelezas. Acordar cedinho, enrolar nos lençóis e ouvir, em silêncio, o cantar dos pássaros em mistura ao “bom dia”. Servir meu café preto e sorrir à bênção de, mais um dia, ter a força de sentir profundo o que é o sabor da vida, a fartura das verdades e das gargalhadas.

        Apesar do medo e das vergonhas, nunca desisti desses pequenos sonhos ficcionais, desses pequenos fragmentos de conatus, dessa busca incansável de, um dia, reafirmar meu lugar aqui, entre vocês — parte de uma história, de uma verdade pulsante e de um legado incapaz de esperar, de morrer. Ainda que seja aterrorizante cada minuto aqui, eu sobrevivo à ida à feira, ao descompasso da rotina, ao desarranjo com o que há de mais concreto e estupidamente humano. Sobrevivo ao nascer e ao pôr do sol. Cultivo minhas pequenas e concretas plantas, cuido dos meus abstratos jardins. Visto minha melhor roupa, mas me sinto bem sem nenhuma também. Não planejo meus passos, mas sei que meus pés me levam ao abrigo onde a chuva não me queima a pele, e onde o tempo corre mais devagar, na linha dos belos sorrisos. Paixão é, senão, transbordar de desejo e solidão misturados no tacho mais ancestral que carregamos no peito.

        Um dia, espero escrever a minha própria história em páginas tão alvas quanto a lua que reflete nas tuas íris e teu corpo — que, até tão pouco tempo, só sabia reagir ao meu toque. Mas são, enfim, tempos de desbeleza.



-A

segunda-feira, agosto 04, 2025

Pele de Moça

 “Ahora es más difícil hablar de esto, está mezclado con otras historias que uno agrega a base de olvidos menores, de falsedades mínimas que tejen y tejen por detrás de los recuerdos”

 Bestiario (1951) por Julio Cortázar (p. 147)

 

Pele de moça é textura, colônia, perfume e calor.
No toque, feitiço, veludo carmim,
solar, radiante e rubor.

Pele de moça é charada, nó de marinheiro em pingo d’água.
Decisão de um dia inteiro, sabor de manhãs de janeiro.
Suspiro sereno de mágoa.

Pele de moça é soneto.
Poesia que nasce no peito,
verso que brota sem jeito,
caminho aberto sem rumo perfeito.

Pele de moça é colher as frutas do pé,
a arte de, aterrorizado, sorrir,
mistério insolúvel no canto do olho,
uma fraqueza em segredo de sempre fingir.

Pele de moça é multitude, infinidade.
É espiar curioso fora dos planos do mundo,
perseguir o extra, rejeitar o ordinário,
fazer de conta, inventar uma verdade.

Pele de moça é espera, agonia, provação.
É sentar na ponta do sofá, pensar no futuro, na viagem pro mar,
é embalar sua pequena nos braços, desejar uma sorte, alinhamento dos astros,
rogar para santo-orixá apertar forte qualquer frouxo ou pequeno laço.

Pele de moça é noite em claro, desejo destilado nas vias do olhar,
medo do atraso, da rejeição,
casa vazia, silêncio que arde,
mas que guarda, assim discreto, cama feita de desejo e paixão.


-A


quarta-feira, maio 21, 2025

Dezessete horas (ou Bilhete para a senhorita C)


"— Você deve ser a última pessoa no mundo que ainda diz essas coisas às mulheres. — Sorria, divertida, olhando-me como se fosse um bicho estranho. — Que breguices você diz, Ricardito!

— O pior não é dizer. O pior é que as sinto. São verdade. Você me transformou num personagem de telenovela. Eu nunca disse essas coisas a ninguém."

—  Travessuras da Menina Má (2006) por Mario Vargas Llosa (p. 127)


Era madrugada  dessas desperdiçadas e toscas  quando bateu-me à porta a bailarina. Embora atravessada por amores múltiplos, escolheu-me em um sopro de sorte e acaso, fazendo-me o garoto que encontra o bilhete premiado ou o mítico palito de picolé. Jamais saberei decerto se era merecedor de todo aquele desejo ou se era apenas zombaria de mais um perverso capítulo da minha biografia. No choque de dois drinques, sofá de bares e batom, prendi-me em sua teia de Faraday em um misto de eletricidade e magnetismo, ora capturado, ora apunhalado pelos ferais olhos verdes que me mediam e atravessavam tal qual um predador calculando o momento certo de atacar a presa, ingenuamente sem saber que todos os momentos eram certos, avenidas inteiras de lábios, ombros e perfumes. 

No cartaz do teatro, seu rosto contrastava com a imaginária e pacífica Nova Iorque ao fundo. As sombras — mímicas de corpos — delineavam a coreografia que me impediu de saber quem era ela nas silhuetas-mil detrás das cortinas. Dentro do meu peito, um leve terror vendo no escuro a sua vida de pura potência. Mares croatas, Barcelona, arranha-céus e, no dedo, uma solitária safira, signo de fidelidade e amor eterno. Na corda bamba da conversa, um voto de confiança. Os dedos entrelaçados e os olhos em perfeita sincronia como se mantidos por um fio invisível que não os deixavam desencontrar no desvio da cena, sem ponto de fuga ou garçom no horizonte. "Veja-me que te vejo também". Porém tua dança era dança de sombras. Ainda que eu quisesse saber mais e tudo de ti, nos palcos ou ao meu lado, eu teria apenas tênue fragmento, pistas de um mistério insolúvel, crônica ao invés de novela, ensaio ao invés de espetáculo, palavra ao invés de sinfonia.

No entardecer, uma chuva fina de primavera nos molhou de mansinho. Na soleira de casa, as roupas um pouco úmidas deixavam-na como um reflexo natural da chegada. A colônia soprada pelo movimento de pendurar o casaco me lançou uma dica do sabor da tua pele, que reclamava do frio e do ar ligeiro que soprava do teto. "Deixa que eu te ajudo." De novo os olhos de lince me olhavam de baixo para cima, lábios semiabertos, uma súplica para minhas inquietudes. O caminhar cuidadoso e felino disfarçava os pés delicados que dançavam sem querer dançar. As pontas dos pés marcavam o tempo de uma música mais sutil que meus ouvidos ansiosos poderiam ouvir. Embora seja esforço infrutífero, minha mente até agora tenta aprisionar uma ou outra lembrança das tuas palavras, mas esse enredo é daqueles vitorianos que não permitem reprise. Cada peça é um universo dentro de si, não haveria roteiro no mundo que fosse capaz de sustentar essa colisão de infindável energia. Tudo é somente uma memória monolítica sem direção. Vetor sem sentido, pulsão de vida e arte. 

Não nego que, para mim, escrever seja parte de um ato reminiscente. Um reflexo criativo de alegrias e tristezas, e, portanto, jamais ousaria tentar lhe explicar a natureza dessa história. Mas arrisco-me a dizer que nosso encontro foi como um microcosmo de amor num espaço de horas. A dança, o gozo, o riso, o banho e a ceia todos juntos no que os físicos chamariam de singularidade. Um mergulho profundo na dilatação relativística do tempo para ver nossas tantas possíveis vidas passarem diante dos nossos olhos como uma lição de deixar ir, deixar passar e se entregar a uma gratidão difícil de exercitar quando se há tanto e muito mais para viver. Ancorado ao teu horizonte de eventos, eu brigava com a possibilidade de entrar naquela unidade heterodoxa de tempo (e espaço) para encontrar-me em uma nova e talvez mais triste realidade - a minha própria sem você. Astro novo na vastidão do teu universo, eu tentava ensaiar a gravidade de outro par, gravitando para vencer satélites certamente mais antigos e certamente maiores do que eu, que iriam clamar-te de volta como um brinquedo infantil precisa voltar ao dono, uma boneca tão bela que me dói nas têmporas só de lembrar. História, apesar de tudo, pesa. Aventuras, nem tanto. São pedagógicas, sim, mas leves como penas ziguezagueando no ar. Passam longe das luas de Júpiter, são Perséiades esperançosas no céu de verão. Mágicas, como tu dissera, ainda recuperando o fôlego. Mas naturalmente fugazes. Cíclicas e de órbitas obtusas, quase excêntricas.

Foi difícil dormir naquela noite, e mais difícil ainda nas outras tantas que se seguiram. Embora eu seja econômico nos afetos, sei enxergar de onde brota no solo a nascente, o olho d'agua espiando a minha alma delicadamente vulnerável e desavisada. Em hora de despedida, em um bilhete escrito às pressas no encarte de um disco, a bailarina das sombras deixou um convite, um punhal espetado junto a um sorriso provocador, um giro pensativo dos dedos entre os cabelos me chamando para perto. Um desejo multissensorial de que uma vez mais — quem sabe no largo das incertezas — a grande maçã iria nos agraciar com uma mordida mais, um novo pecado, uma nova dança na sala de estar. Apesar das dezessete horas terem se esgotado como apressados grãos de areia na ampulheta, vivemos também dezessete vidas, dezessete motivos, cinco quintessenciais, doze um pouco mais impróprios do que eu poderia apontar no papel. 

Em tempo, fantasias são como faróis para um navegante. E navios são como promessas de vida para um náufrago como eu.

Até breve, 

A.

sábado, março 22, 2025

Pétalas de Margarida

"Se eu disser que vi um pássaro 
Sobre o teu sexo, deverias crer? 
E se não for verdade, em nada mudará o Universo. 
Se eu disser que o desejo é Eternidade 
Porque o instante arde interminável 
Deverias crer? E se não for verdade 
Tantos o disseram que talvez possa ser.  
No desejo nos vêm sofomanias, adornos 
Impudência, pejo. E agora digo que há um pássaro 
Voando sobre o Tejo. Por que não posso 
Pontilhar de inocência e poesia 
Ossos, sangue, carne, o agora 
E tudo isso em nós que se fará disforme?" 

—  Do Desejo em Do Amor (1999) por Hilda Hilst (p. 66)


I

Vá, vá viver um grande amor.

Abra ferida nova de vida, clareira, e destino.

Rasgue no couro as velhas manias, papéis desbotados, antigos.

Vá, toma pela mão teu sonho.

Repita os mesmos passos, lance os mesmos dados.

E, relógio parado no tempo, acerte teus descompassos.

Vá, vá viver um grande amor.

Mas não tome por amor o desejo,

Que ao despertar vai olhar-te de volta o espelho,

E lhe faltará a pureza nos gestos,

A calma e a cama de alguém feliz.

II

Portanto, não viva um grande amor.

Apague a trilha detrás de ti,

Oculte teus passos, recolha as migalhas de pão.

Dissimule tua pequena morte, 

Ou, se puder, só morra assim pequena na mais pura solidão.

Vá, faça-te densa neblina matutina,

Mude de rota, entre em qualquer escura viela ou rua mais torta,

Mude de vida, de direção, e guarde-me no terço mais sereno do teu coração.

Não, não vá viver um grande amor.

E se viver, que seja tão somente estúpido, torpe, afã,

E que ao acordar não encontre sentido,

Nada além de um reflexo tosco e distorcido,

Um gesto, um gosto amargo, a ansiedade do infausto, do desafortunado.

III

Mas insisto que vá, vá viver um grande amor!

Lance no espaço indecifrável do mundo as tuas melodias,

Cante pra eles tuas novas, 

Floresça nova estação, a primavera dos teus dias.

Vá, remende minhas falas, repare minhas agruras,

Goze as nossas melhores noites e diga que são só tuas.

Refaça as viagens, leia meus livros, ouça meus discos,

E, atriz de teatro, encarne meu personagem no palco das ruas.

Vá, perca-me nas esquinas da velha cidade,

Encontre-me no limiar de um tempo sem memória,

Minta para si teus causos mais vulgares.

Vá, vá viver um grande amor.

Ame o próprio amor, faça-o fonte inesgotável de alegria,

E sustente o peso e a leveza de ser um em dois e dois em um.

IV

Mas se por um segundo hesitares, não vá viver um grande amor.

Confidencie pra mim a silenciosa ausência da dança,

Proteste, quiçá, a falta de gargalhadas, um fato novo.

Deixe que as margaridas no vaso não desabrochem, que murchem!

Peça à cigana que ponha as cartas,

Esconda-se nos búzios, nos arcanos do tarô,

Nos Enamorados, no Julgamento ou no próprio Louco e suas vicissitudes.

Esqueça minhas frases decoradas e tolos saberes,

Lamente a morte do desejo e abrace o desajuste dos tempos líquidos, impermanentes.

Não, não vá viver um grande amor.

Trema de medo, esqueça a forma, o tom, a nota, a história

Ceda por fraqueza ao peso dos afetos falhos

Da invencibilidade do adeus e da memória.

Vá, vá viver um grande amor. 

Vá. Não vá. Vá. Não vá. Vá. Não vá. Vá.


-A


sexta-feira, março 07, 2025

Rio Doce

20/07/17 • 14:38

Usei a própria ponte que entrecortava teus vales como apoio para escrever esse bilhete. A letra miúda que agora transcrevo eu usei para economizar espaço no único papel que sobrou no bolso: um pequeno envelope miúdo, já envelhecido pelos oito anos que nos separam daquele dia. No verso, a fraca tinta azul denuncia meu medo de perfurar com a ponta da esferográfica minha chance de fotografar aquele momento com palavras, na falta de luz.

Lembro-me que foi como uma pintura suja nosso primeiro encontro. Como um pincel mergulhado em um indistinguível godê de aquarela, nem eu e nem você íamos muito bem. Tons escuros, águas túrbidas e desarmônicas. De ti, só conhecia os afluentes, vênulas e arteríolas, brejos e riachos, pequenos braços dispersos no globo, trechos que alimentam teu pulso, tua força majestosa que atravessa estados, nutre oceanos, talha caminhos. Nos meses que antecederam minha não solicitada visita, via-o pela TV, que, a bem da verdade, anestesiava o que acontecia na crueza da tua verdade. Era como se abafassem meus ouvidos com as mãos apertadas contras as têmporas, isolando-me no silêncio das vinte outras pessoas que me acompanhavam naquela jornada. Havia ali uma conversa telepática, um fragmento de luto pelo teu fluxo que, resistindo, ainda agoniza(va) calado a correnteza cor de lama. Em uma cicatriz diferente daquela que se fecha, pude ver o duro golpe que desferiu o progresso e seus intrincados e nefastos nós de morte. Portanto, meu caminhar naquela ponte era como um cortejo sobre o próprio caixão, uma dor que nem sei decerto descrever. Minha mágoa, por tradição, me pediu a caneta e eu só soube obedecer.

Enquanto eu procurava um cantinho discreto para esse registro, um casal de aves cruzou o céu, cantarolando alguma melodia para quem quer que as ouvisse, maritaquinhas alegres se amontoavam nas embaúbas e outras árvores mais corajosas que se prendiam à margem. Suas conversas familiares enchiam o ar com um paradoxo de beleza e dor. Parecia uma lição, um recado sutil para os ouvidos que - há muito convertidos - já não precisavam daquele sermão. Seu canto, seu apelo quiçá, eram como notas abafadas pelo vapor dos fornos, motores a combustão e explosões que separavam aquele santuário da realidade. Se eu pudesse, seria eu o teu maior eco para o mundo, para além da pequena bolha que se formava ali, o silêncio do grupo, as aves procurando respostas, os peixes buscando ar.

Saiba que não quero aqui achar muito prazer nas palavras. Não quero correr o risco do cinismo da dor. Apesar disso, eu sei que você vai encontrar tua cura, vai cicatrizar as feridas e de nós não guardará mágoa. Vai crescer nossos alimentos, cuidar da nossa gente e sorrir de novo um dia. Um tempo em que talvez eu não esteja aqui pra te ver renascido sob o cuidado de mamãe Oxum. Mas sei que virá. Por isso rogo para que teu leito se cubra de verde, que tua pressa de chegar no Atlântico seja tão grande quanto o cuidado com cada fragmento de vida que te habita, habitou e habitará. Cada minúscula célula que te chama de casa, cada grão que alimenta as nossas crianças, cada filhote e sua mãe matando a sede na ribeira.

Viva o Rio Doce e sua história milenar. Viva sua beleza imortal de uma pintura inabalável. Lamento cada gota imaculada que um dia pousou no teu leito e espero ansioso um dia poder me banhar nas tuas águas.

 

-A

terça-feira, janeiro 28, 2025

Série Fragmentos - VI

6. Gameleira

Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso? 

—  Grande Sertão:Veredas (1956) por Guimarães Rosa (p. 43)


Tu eras grande como um abraço impossível. Ao tentar te envolver nos meus braços, quando muito, tomava talvez a quinta parte do teu tronco. Na casca, as gravuras marcavam sólidas a tua força, exibindo algumas dezenas de amores tatuados na pele como um tributo ao teu infinito secular e ao nosso perecer quase romântico de algumas décadas, talvez uns pares felizes, outros nem tanto. Em meu descanso de tardes vazias, entre os vincos das tuas raízes, quase podia ouvir as águas percolando pelas tuas veias, as folhas exsudando vapores, seivas retornando às raízes e o frescor da tua aura desafiando tremores de gente, máquina e trem. Da copa, era fácil ouvir os pássaros inquilinos cantando a chegada dos pequenos e sentir subir o arrepio da tua sombra se projetando serena sobre meu corpo já cansado e um tanto frio. O pôr do sol chegava mais cedo hoje — vias de inverno — e o cheiro de café passado já me convidava a entrar. Antes do chamado da minha senhora, porém, quis lhe contar, num suspiro em segredo, sobre meu medo de partir e de como eu te imaginava daqui a um tempo. Se lhe podariam as franjas, se lhe deixariam de pé, se lhe dariam o espaço necessário para que sua fundação se mantivesse ali, corajosa, profunda, intensa. Também dividi, numa dúvida aguda, se eu era o primeiro a te adotar assim como amiga, como irmã. Se, com você, minhas memórias também partiriam uma última vez...

Eu bem sei que plantas são criaturas imóveis, mudas. Não precisa doutor vir me contar do que a sabedoria do campo já satisfaz. Mas, pela falta de escolha, por natureza, não é certo se tua natural resiliência bastaria para atravessar a chegada dos tempos modernos. Sabe, talvez seja esse um exemplo barato demais aos homens. Se não podes escolher o espaço, o tempo, que seja então a força de permanecer vivo que opere os milagres, que possa nutrir essa sanha de viver apesar de tudo. Era um tanto assim que eu olhava meu povo ao redor, os esquecidos sem nome ou herança. Aqueles a que se referem como "os dali". Um acaso inconveniente no caminho do progresso...

Olhando assim para meus pequenos a correrem pelo quintal, eu via marcado em nossa pele, em nosso simples caminhar, algo de árvore antiga, algum parentesco distante com aquele pé de gameleira e com outros tantos que foram nos deixando pelo caminho. E não digo pelas rugas e a pele salgada pelo sol, mas por aquele jeito teimoso de encarar o dia, apesar da mais óbvia e essencial razão de não fazê-lo. Do verbo impeditivo, jamais imperativo, de desistir e não mais sonhar. De ceder à força acachapante da desesperança onde nem mesmo o otimismo ingênuo da religião ilumina e alcança. O que éramos e para onde iríamos? Seríamos então raízes procurando respostas ao invés de água? Seria a nossa subsistência a chance de espiar o que vem logo ali, no próximo dia, na próxima estação? Quem é que separa no leito do rio, bateia na mão, vida e morte, ainda que lentas?

Portanto, nas árvores vejo uma chance gratuita de guardar memórias, tão antigas quanto o tempo, tão imponentes como Deus. São parte da minha história e lembrança da minha passagem por aqui. Serão elas a contar aos meus netos quem eu fui, as músicas que cantei, as refeições que fiz ali, aconchegado em teus pés, uma ode à vida tão mais concreta, tão mais intensa e cheia de propósito que a minha. E, nesse intento, deixar uma pequena lição, que, por mais discreta, por mais elementar, talvez por sorte lhes dê um pouco mais de vida para seguir tentando.


-A

terça-feira, novembro 12, 2024

Um Quarto de Mim

                Ilustração por Hermano Zenaide

“[...] rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira [...]”

—  Lavoura Arcaica (1975) por Raduan Nassar, Capítulo 9, p. 54.


Hoje chorei tua partida antes da hora. Só de me cruzar o pensamento o teu descanso, senti profundo o imenso vazio que deixaria tua passagem. Pude ouvir os ecos navegando pelos cômodos da casa, as tuas manias se despedindo dos detalhes, o jeito gentil de mexer os talheres, o impecável forro de mesa florido e a poeira acumulada sobre o móvel que sustentava a TV — raramente ligada aos quatro ventos, raramente necessária para preencher o silêncio pacífico da sala em penumbra. Nesse delírio, senti como se desaparecessem tuas vigorosas plantas, o caminhar sereno, desapressado, teu canto cada vez mais lindo em nossos encontros. Porém, no curso desta hipótese, culpei-me por perceber que talvez nunca tenha lhe contado sobre o amor e a luz que trazes ao mundo. Como ser um produto da tua existência me torna um fragmento das tuas verdades, um broto, um apêndice complexo da tua natureza — expandido no tempo, arremessado no espaço agora tão distante do teu solo, da tua companhia. E aqui, sozinho e em silêncio, imaginei também o teu medo de partir, como praguejara em segredo contra teu corpo decidindo ceder sem teu consentimento, o terror que estaria atravessado em cada movimento, desde o café da manhã até a última página lida do livro de cabeceira. Dividi contigo o infortúnio de saber que não teremos lido todos os livros que gostaríamos, dito ou escrito todas as palavras que cruzaram nosso pensamento, as pessoas e amores que deixamos para trás, nossas canções...

Sabe, admito que nunca te conheci tão bem, teu silêncio sempre foi uma porta fechada, um símbolo de quem viveu muito e sorriu pouco. Era uma felicidade cara, culpada e hereditária, uma melancolia que de alguma forma eu partilhava desde muito moço. Talvez por isso nunca ousei te confrontar sobre o passado, ou mesmo perguntar o que esperava do presente, sonhava para o futuro. Tu eras como um capítulo de uma história maior, o sustentáculo de uma árvore com ramos hoje tão longínquos, indomados, distantes das tuas lições e exemplos mais fundamentais. Hoje, senti como se tua hipotética partida levasse uma parte de mim, arrancada à força pela violência do tempo, tão rude, tão súbito. Era como se, junto de ti, eu soubesse que uma luz em mim também se apagaria, uma fonte de alegrias se secasse, uma nascente de esperança se esgotasse. Saiba, portanto, que tu és minha memória de pequeno, de inocência e de sonho. Me faz querer voltar a ser miúdo, pra caber nos teus braços, grudar nas tuas anáguas para me levar pra brincar entre as plantas, saber do canto dos pássaros, me ensinar a colher a couve, girá-la como só você era capaz, e cortar as folhas tão finas quanto fios de cabelo para então deixar cair numa vasilha tão antiga quanto teu avental desbotado. Eu sempre achei engraçado quando dizia que era fácil, mostrando com paciência o movimento das mãos calosas e paradoxalmente delicadas, como se teu ofício matriarcal te equipasse com todos esses saberes sem o menor esforço.

Tu és prova da minha meninice, me faz querer acordar-te bem cedo ao pé da cama, sussurrando para me alcançar a broa de milho na despensa. E você ia, paciente e lentamente, com os olhos baixos, me olhando correr pela casa em completa graça. Ainda que me doa lembrar disso, também me pego às gargalhadas, lembrando de nossas horas em frente à TV assistindo ao desimportante telejornal. Minha atenção incansável de vigiar teu sono e te ver dormir no sofá, tentando combater as pestanas pesadas de quem só precisava de um pouquinho de paz para cochilar e esperar o próximo dia. Coração sereno, abundante harmonia...

E se o dia seguinte fosse uma quinta-feira, eu sabia que seria a melhor das tardes. Os morangos, as tangerinas e hortaliças encheriam o ar com um frescor único que me faz lembrar da textura do teu vestido, a minha tentativa inócua de decifrar o mundo com o olhar curioso e desavisado de criança, tentando fazer sentido com as intangíveis dinâmicas do teu universo pacato e bucólico. Ainda olho para aqueles dias e tento lembrar de mim, entender você. Tento recordar de cada parte que nos constituía como par, como eram meus finos braços agarrados à tua mão, meu corpo frágil, meu cabelo denso, com o que sonhava, quem me encantava e do que falávamos, se éramos alegres, se éramos tristes... Mas ainda acho um tanto difícil perguntar-te daquele tempo, sobretudo como e por que nós, simplesmente, éramos nós... Eu bem sei que tudo isso não é menosprezo pelo sorriso, mas um obstáculo a mais para sentir, tocar e viver o que há lá fora, para além do que se passa em nossa cabeça. E, como a dualidade de uma maratona, sentir a delícia da chegada, mas a falta de genuíno sentido na atividade em si. Espero que não seja assim contigo.

Se eu pudesse, suplicaria para nunca ir, que fosses como as sequoias, os ciprestes que testemunharam tudo o que a humanidade pode recordar, as mentiras, as verdades, as guerras e as alianças. Que sustentasse tal qual Atlas toda a minha verdade e existência até que eu, com todo o meu egoísmo, também partisse com você. 

Não vá. Te seguro em meu abraço mais apertado, na nossa inversão de força e altura, hoje eu gigante, tu pequenina. Segura em minha mão e vamos à nossa ópera das sextas-feiras, à orquestra de quinta, ao café da tarde para aquecer o peito, caminhar pelo pomar. Só nunca vá, por favor.

Eu te amo.


-A

sábado, setembro 28, 2024

Série Fragmentos - V

                                                                                     Ilustração por Hermano Zenaide

5. Morte de Narciso, voo de Ícaro (ou Le temps détruit tout)


Tendo me tornado — com o passar do tempo — o antropólogo da minha própria experiência, não sinto o menor impulso de depreciar essas almas obsessivas que recolhem cacos de cerâmica, artefatos e utensílios em terras distantes e os organizam a fim de expô-los a nós, para podermos entender melhor a vida dos outros e a nossa própria […].

—  O Museu da Inocência (2008) por Orhan Pamuk, Capítulo 9, p. 43.

 

Hoje pela manhã senti uma paz imensa ao me olhar no espelho. Toquei o rosto com a ponta dos dedos, ainda dormentes pelo frio, e, diferentemente de quando o tocam, não repeli. Deixei-me, pela primeira vez em tempos, saber a textura de minha pele, a curvatura cartunesca do meu nariz e do meu zigomático saltado, que me lembravam a descrição de um personagem das telenovelas. Minhas ideias, no entanto, vagavam longe, na hipótese de que provavelmente ninguém havia me visto verdadeiramente como um conjunto complexo de ideias, concretude viva e pulsante de criatividade. De que eu existo em um plano à parte, sem pudor, sem economias, comunicando ao mundo o que sou, o que sinto, sem meias palavras, sem desvios de rotas, táticas de afeto ou fugas. Eu sou, e, portanto, não me escondo nas esquinas de confidências, não colho de árvores inférteis, infrutíferas, mas me alimento da mais pura potência do que queima e rejeita se apagar, como o sol jovem e alegre das manhãs de Janeiro.

É curioso como somente depois de anos pude contemplar essa crueza dos meus movimentos. Pude me envolver em um abraço forte, sentindo a matéria densa que me compõe, convencendo-me de que eu não era mais — como senti inúmeras vezes no passado — uma corda fina e quebrantável de vida. Pude sentir a materialidade da minha criatura sem a terrível repulsa kafkiana que outrora me fizera evitar os reflexos de espelhos e os consultórios de análise. Vi-me detrás daquele vidro pequeno e retangular como um pêndulo, um artista esperando a hora de entrar no palco, indo de lá para cá, mas com uma paciência e um peso que eu jamais havia experimentado antes. Era natural e leve existir ali, como se por um dia eu pertencesse a este universo e comungasse com ele sem as demandas e medos do mundo. Sem as vergonhas, as inseguranças ou os ódios à flor da pele. Sem as violências da palavra e da carne. Sem as múltiplas paranoias do tédio enjaulado entre paredes tão finas que se escuta o adormecer do vizinho, os amores da jovem ao lado e a fúria incontrolável dos bebês.

Em uma fração de segundos, eu entendi o que é o amor e me entendi enquanto força coesa de átomos e absoluta potência de agir, conatus. Naquela fotografia em movimento, ancorado às minhas bilhões de sinapses, vi-me um tanto nu, sem preconceitos, sem as tantas bússolas morais, axiomas e definições típicos de um cientista pragmático e cético com o rumo do mundo. Habitante de conchas calcárias das mais sólidas, eu sempre soube que viver era como uma máquina a vapor imperfeita, amarrada aos insolúveis nós da física clássica, mantendo-nos em xeque sobre qualquer sonho muito delirante ou impulso de querer ser mais, muito ou melhor. Mas eu, momentaneamente, rejeitei isso. Ali, sozinho e reflexivo, desafiei o pessimismo e quis me equilibrar por um instante na experiência de viver sem dores, sem temores e sem culpa. E sorri.

Porém, no mesmo instante em que essa ideia se formou no espaço liminar da minha distração, também o reducionismo e cinismo foram se dissipando no ar. E como num passe de mágica, recordei de que tão logo você se dá conta da própria história e do curso da vida, percebe que o progresso do tempo, a atividade autômata e quase ininterrupta dos nossos corpos vai nutrir alegrias, desejo, amor, mas também caos, confusão. E, nesse processo, nos aproximar da ebulição das dores, cuspindo o vapor intenso e vulcânico que há de um dia nos fazer parar, seja o coração, as pernas ou as milhares de nanoconexões que montam memórias. A nós, cabe apenas suplicar a Láquesis um pouquinho mais de tempo, um pouquinho mais de calma, que o fio da vida se estique o quanto puder se esticar; para nos oportunizar mais um abraço, mais um olhar e o gosto inviolável de olhares e corpos que se cruzam por mero acaso.

Viver é um tanto Ícaro, um tanto Narciso. Seja na tarefa árdua de mergulhar profundo no eu, de se afogar no terror de amar-se, ou de voar tão alto que lhe queimam as asas, as pestanas e as fantasias. A mim, contudo, seria honrosamente belo saber que vivi, voei, me afoguei e caí. Tão pesado quanto uma rocha, tão leve quanto uma pluma.


-A

segunda-feira, julho 29, 2024

Sísifo-Vampiro


                                                                                                                                      Ilustração por Hermano Zenaide

"I am all in a sea of wonders. I doubt; I fear; I think strange things, which I dare not confess to my own soul."

Drácula (1897) por Bram Stoker, Capítulo 2, p. 27.


Hoje te convidei a entrar, vampiro. Vi nos teus olhos o viço e o chamado de um cão sedento, provando o meu medo como se o sorvesse pelos poros da minha pele pálida em completa ebulição. Emanando do teu rosto, uma aura verde-esmeralda denunciava o veneno das palavras, cantarolando anedotas sobre o que foi e o que poderia ser. Era fascinante ver teu poder de me enredar, conduzir-me na tua valsa e distorcer a noção de tempo, memória e espaço. Se dissesse sim, eu concordaria; se dissesse não, eu negaria resoluta.

Da soleira da minha porta, tua sombra sem contorno se esticava pela sala até desaparecer pontiaguda, varrendo-me com um frio ártico, causando arrepios febris de medo e excitação. Sei que podias ver meus olhos em espirais cartunescas, procurando sentido no teu jogo, a cara de tola em meio ao estúpido movimento da maçaneta, perguntando obediente se querias um copo de café ou um chá. O espaço entre-lábios em minha boca, o som vindo das minhas cordas vocais já trêmulas, eram pistas óbvias do que há de mais involuntário e primitivo nos nossos corpos ainda separados e vestidos. Apesar de dominada, era cômico ver teu esforço ininterrupto para negar tua fome, tua vontade de rasgar o véu que te obriga a ser essa força coesa da natureza, ter de honrar esse contrato de sangue a todo instante em que existe. Um ser centrado, comedido, econômico nas palavras e nas intenções... Apesar de presa fácil, eu me compadeço com tua miséria, sei que existir no plano das ideias e ser somente um ideal de tantos e para tantos é corrosivo, sufocante. Mas por que resumir-se tão somente a esse mero folclore imaterial na imaginação do mundo? Por quê?

Por isso, talvez, você sempre procure a minha morada, o aconchego de um lar que te envolva com o valor de uma lareira e uma sopa quente depois de um dia exaustivo, o justo quinhão do tácito contrato de carne e osso que você assinou por impulso de sonhos de anos atrás. É como uma fuga terapêutica de um mundo que te consome no campo platônico e te usa como um mero fantoche num teatro de bonecos. Antes de existir para si, Sísifo-vampiro, você existe para todos os que te cercam, e só depois é que te autorizam a usufruir do que sobra da tua carne. Tal qual a hóstia de um deus repartido em milhões, trilhões, que todos os dias, em algum lugar da Terra, é afogado em vinho tinto para esconder o gosto amargo na boca. Será que ainda lembro teu gosto? Acho que não...

Sabe, ainda me pergunto por que escolheu ser esse nômade no intangível do mundo. Por que abandonou teu mais belo traço e o trocou por uma imagem que nem mesmo você enxerga nos espelhos e reflexos da vida? Ou, se puder, diga-me, vampiro: quem foi que te esculpiu assim em um dia desimportante? Quem foi que te fez vítima do que há de mais perverso no mundo? Ou será que fostes moldado, talhado até não viver mais nas amarras do tempo? Quem foi que te condenou?

Certa feita, em um desses almanaques baratos que o jornaleiro vira e mexe me empurra por dois tostões, li que nem mesmo o próprio reflexo vês. Mas não sei se por natural cegueira ou se já lhe turvaram tanto a vista que também se foi o sentido. E veja que não te digo isso por viés moral ou apego à tua carne que, paradoxalmente, já me alimentou, mas pela morte da poesia que eu supunha emanar de cada célula que te compõe e te sustenta de pé. Se hoje te alimento, talvez seja porque tua humanidade pristina outrora me saciara também. Tão só a tua revanche, um débito de outra vida que pago nessa.

Encarando-te assim na verve dos meus dias mais felizes, sem esperar visita, não sei decerto se te devo alguma parcela de gratidão ou se deveria nutrir culpa. Na dança e nos papéis que interpretamos no enredo dos outros, alguns vivem para se tornarem vilões, lembranças de um tempo calmo, ou ambos. Por isso, estico o pulso já exaurido de qualquer cuidado e evito qualquer troca de palavras. Na contracena de vida e morte, cumpro minha parte do trato, da peça. Descem as cortinas, saem os amores, entram os fantasmas. E de novo, de novo, até um novo e inalcançável cume.

Enquanto te passo o lenço para aparar os excessos que agora gotejam em meu tapete quase impecável, vejo tuas presas se enterrarem fundo em minha carne, já tão fina quanto uma folha de hortaliça. A tua respiração ofegante soprando em meu pulso um fluxo quase imperceptível de ar, acompanhado por um frio na espinha. Era como se a alegria e a ternura fossem deixando meu peito, drenadas com uma calma cirúrgica, sem ansiedades, sem receios, lentamente. Meus músculos cedem como se separados da minha própria razão. Meus olhos embotados encaram teu apetite inconsequente, abraçando a minha nulidade ao sequer fazer contato no olhar. Eram movimentos orquestrados de quem já estivera ali um milhão de vezes. E estivera. Para a minha tardia realização de que se te matei e exauri num tempo, há de fazê-lo comigo também n'outro.

Confesso que jamais imaginei que acabaria assim, sendo apenas um acessório no teu carrossel de desejos, o mais puro estado de matéria, já nem tão animada assim. Em meus últimos segundos, ainda pude ver-te limpar os lábios com os polegares curvados, formando com o sangue um estúpido e abstrato coração, irônicos lábios de amor e morte. Um ajuste na gravata, um pigarreio meio ensaiado e a delicadeza de pousar meu corpo frágil no sofá da sala, como se em um cochilo vespertino ou uma boneca de pano.

Ali, naquele instante, eu sabia que, como Sísifo, estávamos condenados a um ciclo eterno: morrer e renascer na fome imortal do desejo, empurrando a pedra do nosso tormento nas voltas de um tempo sem medida, oco, vazio.


-A