terça-feira, novembro 12, 2024

Um Quarto de Mim

                Ilustração por Hermano Zenaide

“[...] rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira [...]”

—  Lavoura Arcaica (1975) por Raduan Nassar, Capítulo 9, p. 54.


Hoje chorei tua partida antes da hora. Só de me cruzar o pensamento o teu descanso, senti profundo o imenso vazio que deixaria tua passagem. Pude ouvir os ecos navegando pelos cômodos da casa, as tuas manias se despedindo dos detalhes, o jeito gentil de mexer os talheres, o impecável forro de mesa florido e a poeira acumulada sobre o móvel que sustentava a TV — raramente ligada aos quatro ventos, raramente necessária para preencher o silêncio pacífico da sala em penumbra. Nesse delírio, senti como se desaparecessem tuas vigorosas plantas, o caminhar sereno, desapressado, teu canto cada vez mais lindo em nossos encontros. Porém, no curso desta hipótese, culpei-me por perceber que talvez nunca tenha lhe contado sobre o amor e a luz que trazes ao mundo. Como ser um produto da tua existência me torna um fragmento das tuas verdades, um broto, um apêndice complexo da tua natureza — expandido no tempo, arremessado no espaço agora tão distante do teu solo, da tua companhia. E aqui, sozinho e em silêncio, imaginei também o teu medo de partir, como praguejara em segredo contra teu corpo decidindo ceder sem teu consentimento, o terror que estaria atravessado em cada movimento, desde o café da manhã até a última página lida do livro de cabeceira. Dividi contigo o infortúnio de saber que não teremos lido todos os livros que gostaríamos, dito ou escrito todas as palavras que cruzaram nosso pensamento, as pessoas e amores que deixamos para trás, nossas canções...

Sabe, admito que nunca te conheci tão bem, teu silêncio sempre foi uma porta fechada, um símbolo de quem viveu muito e sorriu pouco. Era uma felicidade cara, culpada e hereditária, uma melancolia que de alguma forma eu partilhava desde muito moço. Talvez por isso nunca ousei te confrontar sobre o passado, ou mesmo perguntar o que esperava do presente, sonhava para o futuro. Tu eras como um capítulo de uma história maior, o sustentáculo de uma árvore com ramos hoje tão longínquos, indomados, distantes das tuas lições e exemplos mais fundamentais. Hoje, senti como se tua hipotética partida levasse uma parte de mim, arrancada à força pela violência do tempo, tão rude, tão súbito. Era como se, junto de ti, eu soubesse que uma luz em mim também se apagaria, uma fonte de alegrias se secasse, uma nascente de esperança se esgotasse. Saiba, portanto, que tu és minha memória de pequeno, de inocência e de sonho. Me faz querer voltar a ser miúdo, pra caber nos teus braços, grudar nas tuas anáguas para me levar pra brincar entre as plantas, saber do canto dos pássaros, me ensinar a colher a couve, girá-la como só você era capaz, e cortar as folhas tão finas quanto fios de cabelo para então deixar cair numa vasilha tão antiga quanto teu avental desbotado. Eu sempre achei engraçado quando dizia que era fácil, mostrando com paciência o movimento das mãos calosas e paradoxalmente delicadas, como se teu ofício matriarcal te equipasse com todos esses saberes sem o menor esforço.

Tu és prova da minha meninice, me faz querer acordar-te bem cedo ao pé da cama, sussurrando para me alcançar a broa de milho na despensa. E você ia, paciente e lentamente, com os olhos baixos, me olhando correr pela casa em completa graça. Ainda que me doa lembrar disso, também me pego às gargalhadas, lembrando de nossas horas em frente à TV assistindo ao desimportante telejornal. Minha atenção incansável de vigiar teu sono e te ver dormir no sofá, tentando combater as pestanas pesadas de quem só precisava de um pouquinho de paz para cochilar e esperar o próximo dia. Coração sereno, abundante harmonia...

E se o dia seguinte fosse uma quinta-feira, eu sabia que seria a melhor das tardes. Os morangos, as tangerinas e hortaliças encheriam o ar com um frescor único que me faz lembrar da textura do teu vestido, a minha tentativa inócua de decifrar o mundo com o olhar curioso e desavisado de criança, tentando fazer sentido com as intangíveis dinâmicas do teu universo pacato e bucólico. Ainda olho para aqueles dias e tento lembrar de mim, entender você. Tento recordar de cada parte que nos constituía como par, como eram meus finos braços agarrados à tua mão, meu corpo frágil, meu cabelo denso, com o que sonhava, quem me encantava e do que falávamos, se éramos alegres, se éramos tristes... Mas ainda acho um tanto difícil perguntar-te daquele tempo, sobretudo como e por que nós, simplesmente, éramos nós... Eu bem sei que tudo isso não é menosprezo pelo sorriso, mas um obstáculo a mais para sentir, tocar e viver o que há lá fora, para além do que se passa em nossa cabeça. E, como a dualidade de uma maratona, sentir a delícia da chegada, mas a falta de genuíno sentido na atividade em si. Espero que não seja assim contigo.

Se eu pudesse, suplicaria para nunca ir, que fosses como as sequoias, os ciprestes que testemunharam tudo o que a humanidade pode recordar, as mentiras, as verdades, as guerras e as alianças. Que sustentasse tal qual Atlas toda a minha verdade e existência até que eu, com todo o meu egoísmo, também partisse com você. 

Não vá. Te seguro em meu abraço mais apertado, na nossa inversão de força e altura, hoje eu gigante, tu pequenina. Segura em minha mão e vamos à nossa ópera das sextas-feiras, à orquestra de quinta, ao café da tarde para aquecer o peito, caminhar pelo pomar. Só nunca vá, por favor.

Eu te amo.


-A

sábado, setembro 28, 2024

Série Fragmentos - V

                                                                                     Ilustração por Hermano Zenaide

5. Morte de Narciso, voo de Ícaro (ou Le temps détruit tout)


Tendo me tornado — com o passar do tempo — o antropólogo da minha própria experiência, não sinto o menor impulso de depreciar essas almas obsessivas que recolhem cacos de cerâmica, artefatos e utensílios em terras distantes e os organizam a fim de expô-los a nós, para podermos entender melhor a vida dos outros e a nossa própria […].

—  O Museu da Inocência (2008) por Orhan Pamuk, Capítulo 9, p. 43.

 

Hoje pela manhã senti uma paz imensa ao me olhar no espelho. Toquei o rosto com a ponta dos dedos, ainda dormentes pelo frio, e, diferentemente de quando o tocam, não repeli. Deixei-me, pela primeira vez em tempos, saber a textura de minha pele, a curvatura cartunesca do meu nariz e do meu zigomático saltado, que me lembravam a descrição de um personagem das telenovelas. Minhas ideias, no entanto, vagavam longe, na hipótese de que provavelmente ninguém havia me visto verdadeiramente como um conjunto complexo de ideias, concretude viva e pulsante de criatividade. De que eu existo em um plano à parte, sem pudor, sem economias, comunicando ao mundo o que sou, o que sinto, sem meias palavras, sem desvios de rotas, táticas de afeto ou fugas. Eu sou, e, portanto, não me escondo nas esquinas de confidências, não colho de árvores inférteis, infrutíferas, mas me alimento da mais pura potência do que queima e rejeita se apagar, como o sol jovem e alegre das manhãs de Janeiro.

É curioso como somente depois de anos pude contemplar essa crueza dos meus movimentos. Pude me envolver em um abraço forte, sentindo a matéria densa que me compõe, convencendo-me de que eu não era mais — como senti inúmeras vezes no passado — uma corda fina e quebrantável de vida. Pude sentir a materialidade da minha criatura sem a terrível repulsa kafkiana que outrora me fizera evitar os reflexos de espelhos e os consultórios de análise. Vi-me detrás daquele vidro pequeno e retangular como um pêndulo, um artista esperando a hora de entrar no palco, indo de lá para cá, mas com uma paciência e um peso que eu jamais havia experimentado antes. Era natural e leve existir ali, como se por um dia eu pertencesse a este universo e comungasse com ele sem as demandas e medos do mundo. Sem as vergonhas, as inseguranças ou os ódios à flor da pele. Sem as violências da palavra e da carne. Sem as múltiplas paranoias do tédio enjaulado entre paredes tão finas que se escuta o adormecer do vizinho, os amores da jovem ao lado e a fúria incontrolável dos bebês.

Em uma fração de segundos, eu entendi o que é o amor e me entendi enquanto força coesa de átomos e absoluta potência de agir, conatus. Naquela fotografia em movimento, ancorado às minhas bilhões de sinapses, vi-me um tanto nu, sem preconceitos, sem as tantas bússolas morais, axiomas e definições típicos de um cientista pragmático e cético com o rumo do mundo. Habitante de conchas calcárias das mais sólidas, eu sempre soube que viver era como uma máquina a vapor imperfeita, amarrada aos insolúveis nós da física clássica, mantendo-nos em xeque sobre qualquer sonho muito delirante ou impulso de querer ser mais, muito ou melhor. Mas eu, momentaneamente, rejeitei isso. Ali, sozinho e reflexivo, desafiei o pessimismo e quis me equilibrar por um instante na experiência de viver sem dores, sem temores e sem culpa. E sorri.

Porém, no mesmo instante em que essa ideia se formou no espaço liminar da minha distração, também o reducionismo e cinismo foram se dissipando no ar. E como num passe de mágica, recordei de que tão logo você se dá conta da própria história e do curso da vida, percebe que o progresso do tempo, a atividade autômata e quase ininterrupta dos nossos corpos vai nutrir alegrias, desejo, amor, mas também caos, confusão. E, nesse processo, nos aproximar da ebulição das dores, cuspindo o vapor intenso e vulcânico que há de um dia nos fazer parar, seja o coração, as pernas ou as milhares de nanoconexões que montam memórias. A nós, cabe apenas suplicar a Láquesis um pouquinho mais de tempo, um pouquinho mais de calma, que o fio da vida se estique o quanto puder se esticar; para nos oportunizar mais um abraço, mais um olhar e o gosto inviolável de olhares e corpos que se cruzam por mero acaso.

Viver é um tanto Ícaro, um tanto Narciso. Seja na tarefa árdua de mergulhar profundo no eu, de se afogar no terror de amar-se, ou de voar tão alto que lhe queimam as asas, as pestanas e as fantasias. A mim, contudo, seria honrosamente belo saber que vivi, voei, me afoguei e caí. Tão pesado quanto uma rocha, tão leve quanto uma pluma.


-A

segunda-feira, julho 29, 2024

Sísifo-Vampiro


                                                                                                                                      Ilustração por Hermano Zenaide

"I am all in a sea of wonders. I doubt; I fear; I think strange things, which I dare not confess to my own soul."

Drácula (1897) por Bram Stoker, Capítulo 2, p. 27.


Hoje te convidei a entrar, vampiro. Vi nos teus olhos o viço e o chamado de um cão sedento, provando o meu medo como se o sorvesse pelos poros da minha pele pálida em completa ebulição. Emanando do teu rosto, uma aura verde-esmeralda denunciava o veneno das palavras, cantarolando anedotas sobre o que foi e o que poderia ser. Era fascinante ver teu poder de me enredar, conduzir-me na tua valsa e distorcer a noção de tempo, memória e espaço. Se dissesse sim, eu concordaria; se dissesse não, eu negaria resoluta.

Da soleira da minha porta, tua sombra sem contorno se esticava pela sala até desaparecer pontiaguda, varrendo-me com um frio ártico, causando arrepios febris de medo e excitação. Sei que podias ver meus olhos em espirais cartunescas, procurando sentido no teu jogo, a cara de tola em meio ao estúpido movimento da maçaneta, perguntando obediente se querias um copo de café ou um chá. O espaço entre-lábios em minha boca, o som vindo das minhas cordas vocais já trêmulas, eram pistas óbvias do que há de mais involuntário e primitivo nos nossos corpos ainda separados e vestidos. Apesar de dominada, era cômico ver teu esforço ininterrupto para negar tua fome, tua vontade de rasgar o véu que te obriga a ser essa força coesa da natureza, ter de honrar esse contrato de sangue a todo instante em que existe. Um ser centrado, comedido, econômico nas palavras e nas intenções... Apesar de presa fácil, eu me compadeço com tua miséria, sei que existir no plano das ideias e ser somente um ideal de tantos e para tantos é corrosivo, sufocante. Mas por que resumir-se tão somente a esse mero folclore imaterial na imaginação do mundo? Por quê?

Por isso, talvez, você sempre procure a minha morada, o aconchego de um lar que te envolva com o valor de uma lareira e uma sopa quente depois de um dia exaustivo, o justo quinhão do tácito contrato de carne e osso que você assinou por impulso de sonhos de anos atrás. É como uma fuga terapêutica de um mundo que te consome no campo platônico e te usa como um mero fantoche num teatro de bonecos. Antes de existir para si, Sísifo-vampiro, você existe para todos os que te cercam, e só depois é que te autorizam a usufruir do que sobra da tua carne. Tal qual a hóstia de um deus repartido em milhões, trilhões, que todos os dias, em algum lugar da Terra, é afogado em vinho tinto para esconder o gosto amargo na boca. Será que ainda lembro teu gosto? Acho que não...

Sabe, ainda me pergunto por que escolheu ser esse nômade no intangível do mundo. Por que abandonou teu mais belo traço e o trocou por uma imagem que nem mesmo você enxerga nos espelhos e reflexos da vida? Ou, se puder, diga-me, vampiro: quem foi que te esculpiu assim em um dia desimportante? Quem foi que te fez vítima do que há de mais perverso no mundo? Ou será que fostes moldado, talhado até não viver mais nas amarras do tempo? Quem foi que te condenou?

Certa feita, em um desses almanaques baratos que o jornaleiro vira e mexe me empurra por dois tostões, li que nem mesmo o próprio reflexo vês. Mas não sei se por natural cegueira ou se já lhe turvaram tanto a vista que também se foi o sentido. E veja que não te digo isso por viés moral ou apego à tua carne que, paradoxalmente, já me alimentou, mas pela morte da poesia que eu supunha emanar de cada célula que te compõe e te sustenta de pé. Se hoje te alimento, talvez seja porque tua humanidade pristina outrora me saciara também. Tão só a tua revanche, um débito de outra vida que pago nessa.

Encarando-te assim na verve dos meus dias mais felizes, sem esperar visita, não sei decerto se te devo alguma parcela de gratidão ou se deveria nutrir culpa. Na dança e nos papéis que interpretamos no enredo dos outros, alguns vivem para se tornarem vilões, lembranças de um tempo calmo, ou ambos. Por isso, estico o pulso já exaurido de qualquer cuidado e evito qualquer troca de palavras. Na contracena de vida e morte, cumpro minha parte do trato, da peça. Descem as cortinas, saem os amores, entram os fantasmas. E de novo, de novo, até um novo e inalcançável cume.

Enquanto te passo o lenço para aparar os excessos que agora gotejam em meu tapete quase impecável, vejo tuas presas se enterrarem fundo em minha carne, já tão fina quanto uma folha de hortaliça. A tua respiração ofegante soprando em meu pulso um fluxo quase imperceptível de ar, acompanhado por um frio na espinha. Era como se a alegria e a ternura fossem deixando meu peito, drenadas com uma calma cirúrgica, sem ansiedades, sem receios, lentamente. Meus músculos cedem como se separados da minha própria razão. Meus olhos embotados encaram teu apetite inconsequente, abraçando a minha nulidade ao sequer fazer contato no olhar. Eram movimentos orquestrados de quem já estivera ali um milhão de vezes. E estivera. Para a minha tardia realização de que se te matei e exauri num tempo, há de fazê-lo comigo também n'outro.

Confesso que jamais imaginei que acabaria assim, sendo apenas um acessório no teu carrossel de desejos, o mais puro estado de matéria, já nem tão animada assim. Em meus últimos segundos, ainda pude ver-te limpar os lábios com os polegares curvados, formando com o sangue um estúpido e abstrato coração, irônicos lábios de amor e morte. Um ajuste na gravata, um pigarreio meio ensaiado e a delicadeza de pousar meu corpo frágil no sofá da sala, como se em um cochilo vespertino ou uma boneca de pano.

Ali, naquele instante, eu sabia que, como Sísifo, estávamos condenados a um ciclo eterno: morrer e renascer na fome imortal do desejo, empurrando a pedra do nosso tormento nas voltas de um tempo sem medida, oco, vazio.


-A

sexta-feira, setembro 08, 2023

Série Fragmentos - IV


4. Sobre o medo de escrever (ou Da cegueira)

"(...) Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem."

Ensaio Sobre a Cegueira por José Saramago (1995)


Vagando no trem de Fundo Céu, lembrei-me de Borges e sua cegueira. As costas arqueadas na cadeira de balanço, o café frio na mesa de canto, e sua voz rouca ditando sonhos, narrando causos e parágrafos sem que pudesse vê-los no papel. Para ele, escrever era sonoro, e seu confidente um diapasão de ideias, canalizando seu pulso criativo que passava por outras vias sensoriais para além da visão. Como seria viver nesse mundo, onde os pensamentos vagam altos e públicos naquilo que deveria ser de essência visual e íntima? Como a escuridão mutava, retorcia suas reflexões?

Estremeci de medo ao imaginar-me assim, questionando se eu teria a coragem de dividir minhas ideias cruas com um confidente, compartilhar do nascedouro as minhas intimidades e no olho d'água deixar brotar as inquietudes da alma. Para ele, bastaria só a ideia pujante para ferir a pele, atrair o olhar, mover o amor e infectar com ideias outros mortais? E se bastasse, o que fez o cego Borges quando lhe faltaram ouvidos munidos de penas? Quando na bolsa lhe escapou o punção metálico? Esqueceu? Deixou escapar?

Em meu microcosmo amador e desimportante, palavras nascem como sentimento, já vêem como que prontas para o mundo, ansiosas, não podem esperar muito até que ganhem forma no papel... E nesse pulso de existir me fazem refém para torná-las reais, até que as enxugo, retorço e moldo para que sosseguem sem muito me maltratar. Às vezes assaltam-me no trabalho, no banho pela manhã ou nas cobertas com minha senhora. E, no processo, perco-me, espeto o dedo na curiosidade de querer saber um pouco mais, de dar forma a um cubo disforme de argila virgem como um Rodin clandestino. Para cada palavra que escrevo, uma palavra a mais que me define, um pensamento a menos que faço segredo, um passo mais perto da minha consciência. Mas nunca esqueço, nunca ignoro o chamado da ideia. E de novo, pergunto-me o que o fez o cego Borges quando suas palavras o arrebataram num dia de solidão, no calar da noite, ou em um daqueles instantes de ansiedade e pesar.Talvez seja aí onde moram os fantasmas.

Sempre pensei que a beleza de escrever caminha lado a lado com a "desbeleza" de revelar-se. É como fazer sua sessão de terapia numa praça pública e esperar que as pessoas ignorem essa loucura ou admirem as suas incongruências, suas sandices. Portanto hoje me autorizo o mistério, largo a caneta e aceito perder tantas ideias quanto é possível perder, deixo escapar dúzias de parágrafos, sem me punir pela ânsia de traduzir qualquer sentimento muito íntimo. Serei o escritor sem pena, a aberração, Borges em seu esquecimento mais tolo na ida ao mercado. Apesar de um ser de muita coragem, sou também um ser de muito medo, um paradoxo. 

No próximo empenho prometo contar-lhes uma ficção, uma mentira que me ocorrer na volta pra casa, espiando transeuntes ou pensando na assustadora previsão de tempos mais sombrios. Algo menos meu e mais teu. 


-A


A imagem foi gentilmente dedicada ao texto por Hermano Zenaide, que publica desenhos em sua página no Twitter: https://twitter.com/hermanozenaide

sábado, agosto 12, 2023

Série Fragmentos - III

 


3. Uma manhã nas florestas em que meditei observando a despedida de uma raposa.


"(...) Porque cada um de vós tem a sua própria morte, transporta-a consigo num lugar secreto desde que nasceu, ela pertence-te, tu pertences-lhe, E os animais, e os vegetais, Suponho que com eles se passará o mesmo, Cada qual com a sua morte, Assim é, Então, as mortes são muitas, tantas como os seres vivos que existiram, existem e existirão (...)"

  As Intermitências da Morte por José Saramago (2005)
 

Deixo aqui de pronto, nua e crua, a triste curiosidade que me ocorreu ao ver partir tantos e tantos pequenos animais que encontro nas florestas onde caminho. Quando acometidos por alguma chaga, alguma dor, eles recolhem-se em ninhos de espinhos e arbustos a esperar sua hora de partida, sempre enroscados em arvoretas, sozinhos, miúdos, encolhidos, seguros... É uma cena sem choro, sem raiva, sem medo ou injúria, mas que eu, irredutivelmente humano, atribuía lamento e pesar.

Ainda é inconcebível para minha estreita e limitada inteligência imaginar que a natureza coube de selecionar para todos os seres, menos para nós, o não-luto, a não-despedida, pois que somos - dirá o leitor - esse vórtex de culpa que não vai e não deixa ir. Para nós, a memória é como o petróleo do tempo, o negrume turvo que afia as culpas e perece as belezas. E para além do não-luto somos vítimas de um perverso esquecimento, máquinas de desmemoriar, brutas rochas de instantes, de fluxos vazios e imprecisos de quilojoules tentando ordenar o caos, mas que cedem ao impermanente rio que corre e dilui o que foi, e até o que é agora, hoje, teu. Neurônios são por natureza engenhosos, sádicos e criativos. Centelhas que acendem sem motivos, desligam sem aviso, motores que nos dirigem como vagalumes numa noite sem luar. Figuras enlutadas em trânsito, propósitos buscando iguais.

Olhando a despedida de uma raposa, vi que a pureza dos animais mora na impossibilidade de interpretar a memória e dar sentido a ela. Não fazem velórios, não marcam datas... Vivem, protegem, reúnem-se e educam-se sem que isso seja um ritual, sem que seja uma norma, um grande evento. São impulsos de um sagrado misterioso e perpétuo... Distante da sua morada, ela protegia os seus, afastava os predadores dos pequenos e preservava seu miúdo corpo; sem sustos, sem arrependimentos, e em absoluta graça. Ainda que eu recebesse uma centena de vezes aquela mesma lição, não saberia dizer o que aqueles olhos serenos me contavam. O impulso de entender não superou a vontade de partir, de recuar.



-A


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quinta-feira, junho 22, 2023

Série Fragmentos - II


2. Memória de um menino, charada para um adulto


"(...) El tiempo es la sustancia de que estoy hecho. El tiempo es un río que me arrebata, pero yo soy el río; es un tigre que me destroza, pero yo soy el tigre; es un fuego que me consume, pero yo soy el fuego. El mundo, desgraciadamente, es real; yo, desgraciadamente, soy Borges."

Nueva refutación del tiempo por Jorge Luis Borges en Otras inquisiciones (1952)


Lembro de visitar uma amiga quando garoto e, intrigado, observá-la vigiar o tempo nervosamente. Na sala havia três relógios: o seu de pulso, o de cordas na parede da cozinha e o andar crescentemente nervoso de sua mãe de um lado a outro, marcando um tic-tac paralelo, informal. Mais preciso que os ponteiros eram os pés de tamanco-madeira que golpeavam o tablado oco que dava para o porão. A fúria nos pés da senhora faziam levantar uma fina camada de poeira que dançava quase que se apoiando nos poucos raios de sol que cruzavam as feias cortinas bordadas, que já passavam dos 40, talvez 50 anos. Como um badalar de sinos, o som abafado do caminhar da velha chocava-se no tablado de tatajuba e se combinava ao coração pesado no meu peito, marcando os passos e meus respiros. O silêncio obsceno da figura amarga e autoritária parecia aguardar o deslize da presa e revelava qualquer coisa de diversão ali. Não soube decifrar se ela esperava uma resposta ou um choro - que é uma resposta menos verbal e mais humana se comparado a um mero jogo de palavras ou um pedido de desculpas, se é que um era devido.

Hoje, ao revisitar a cena, concluo que quando criança tudo é demais, tudo é verdadeiramente grave, súbito e delicioso. As dimensões da nossa experiência de vida, nossa condição humana, são dobradas, quadruplicadas, tanto em tempero quanto em quantidade. Essa sensação, suponho, só passa depois dos 40, quando já se viveu e viu o suficiente, e a surpresa e as emergências vão se decompondo em micro ou nanopulsos de responsabilidade e compromisso. Algo que eu secretamente chamo de homeopatia da vida e das cores. Onde um erro é bem menos fatal que antes, e uma mágoa é somente uma mágoa, há de voltar, há de passar. Quando deixamos a meninice, somos veneno e antídoto caminhando lado a lado.

Até hoje eu me agarro a essa memória, tentando lembrar o que fizera de errado; se fora um vaso derrubado, um descuido com a louça, ou se chegamos para além do horário combinado. Eu talvez jamais descubra o porquê de seus lábios mordidos, dos olhos fugidios e dos ombros baixos na ausência de culpa. Ou o motivo de tamanha vigia do tempo... Certa hora ficou tarde - minha mãe provavelmente esperava por mim, embora eu não tivesse pista do seu humor - e eu tive de deixá-la ali, meio contrariado com o que parecia ser meu maior ato de covardia. Apesar de minha fuga e dessa charada travestida de memória, eu desejei intensamente que você ficasse bem e em paz, velha amiga.


- A



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quarta-feira, maio 31, 2023

Série Fragmentos - I

1.  Me deixa em paz (ou O dia em que acordei pensando nas Minas Gerais)


"La soledad le había seleccionado los recuerdos, y había incinerado los entorpecedores montones de basura nostálgica que la vida había acumulado en su corazón, y había purificado, magnificado y eternizado los otros, los más amargos" 

Cien años de soledad por Gabriel García Márquez, 1967.


Evitar a dor, como Alaíde Costa advertia, é impossível. E nos embalos dessa poesia eu refletia sobre a dor que causam o tempo e a idade. Nem mesmo concluí meus 30 anos e já me palpita o coração pelo medo da potência dos minutos que me escorrem as mãos. Penso na minha vontade incontida de agarrá-lo pela gola da camisa e de pedir pra que ele pare. Pare pra que eu desfrute do sorriso de minha mãe, para que eu possa admirar mesmo de longe a força dos meus pais, para que eu me encante com a juventude dos meus irmãos e com o desejo inesgotável da minha menina... Pare para que eu não me dissolva no meu pequeno apartamento, arranhando as paredes de agonia, para que o relógio se sossegue manso, que enfim sustente-me no instante, na minha paz de um domingo preparando um bom almoço, acompanhado de uma cerveja e um bom som. Pare para que eu consiga um pulso de reflexão sobre meus dias, meu passado, presente e futuro, num breve silêncio contemplativo pra saber se eu aprendi algo, se cresci, se melhorei, se abandonei velhos hábitos e vivi. Não é o medo da partida, mas o desejo puro, como de respirar fundo um ar novo, talvez inédito. Medo de nunca experimentar esse não-tempo, de não poder participar do aterrorizante e lindo fenômeno no qual ele, o tempo, por uma breve distração, esqueça de passar. Medo de jamais poder olhá-lo em retrospectiva e entender-me sem que nesse processo eu o veja passar e o consuma como em outra tarefa qualquer. Medo de que o tempo seja uma força que nos impulsiona somente para frente, e que o que passou seja somente uma fantasia dos antigos e dos arrependidos.

Lembrar é, intrinsicamente, um ofício de quem está só, ou dos que temem viver assim.

- A


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domingo, setembro 25, 2022

O Corpo e a Pólis



"Ser inmortal es baladí; menos el hombre, todas las criaturas lo son, pues ignoran la muerte; lo divino, lo terrible, lo incomprensible, es saberse inmortal.”

El Aleph por Jorge Luis Borges, 1949.


Eu bem me lembro germinar em teu seio, cidade. Sinto, como se fosse ontem, o aroma dos cafés, a densidade da atmosfera sobre minha cabeça e meu corpo frágil tentando se equilibrar nas tensões e nos medos de estar em ti. Ainda semente eu esticava rizomas, rizoides e risadas entre tuas ruas estreitas e sem vida, firmando-me em tuas contradições. Como nas artérias de um ser, rodava, circulando nas vielas e cinemas do Allen para achar minhas saídas capilares que dessem em algum lugar bonito.

Sentia-me como aquelas toscas flores, margaridas, nascendo teimosas nas fendas do pavimento. Insistente, corajoso, intrépido, sempre acelerado pelos ventos da meninice que me arrastavam pelos bares, lares e aos subúrbios das moças. Embora tu não fosses meu solo fértil, foi só quando te vi à distância, um mapa, uma foto, cheia de formigas que transitavam como eu - cheias de pressa e de sonhos - que percebi que eu era só um fascículo da tua história, um breve sopro de vida que se deu ali por acidente. E ver a tal imagem era como me ver junto de ti, sabendo que como teu tempo e tuas histórias eu era também efêmero. Fez-me lembrar aquela canção de Caetano sobre a Terra, mas em uma escala menor, mais comedida e bem menos importante que a do Veloso, claro, mas com o mesmo delirante torpor de ver-se miúdo e, você, imune a tudo - gargalhando de nós.

Destes dias, preservo também a dor de ver como lhe agitaram as colunas, como roeram tua carne e ataram novas formas, geométricas, disformes, modernas... como esticaram-te feito as massas, afinando teu recheio, enfraquecendo-te para moer nas máquinas da modernidade e fundir as vigas que te colocaram de pé. Ao ver-te, cidade, eu me via também. Meus sonhos nas tuas ruas desbotando feito velhos arquivos, o soerguimento das minhas dores como se você zombasse da minha inocência. Se me espiavas ali, em cada instante, sabe como queimava, como doía... Hoje, já longe de ser moço, tornou-se difícil até mesmo me recordar de quem eu era, para onde queria ir.

Engraçado como n'outro dia tentei me lembrar como era minha postura, como era o ritmo da minha caminhada, como era o meu ar, se cansado, se triste, ou se confiante, sonhador. Brinquei de imaginar se algum estranho no trem me desenhou à distância como virou praxe nas estações mundo afora. Era por bem que não o tivessem feito. Não era uma imagem muito feliz aos olhos das moças que ele talvez quisesse impressionar. Parece-me, assim, outra vida, outra história para contar, com personagens e palcos novos, mais borrados do que vívidos, como um ator que se despede de um personagem. Admito que por muito tempo eu te culpei pelas minhas desventuras, achava que teu solo era a razão de tudo, um lugar que não me acolhia, uma maldição lovecraftiana que te arrebatou os bons ventos e envenenou a terra. Porém era eu que não te convidava para ser parte de mim, para ser minha casa, minha pólis. Eu era como uma presa em tua teia aracnídea, atado a teu leito sem desejar estar ali, sem te convidar para entrar, você sem me deixar sair. Não era pura a nossa história, como que maculada pelo meu empenho em te deixar, estando eu ali só por circunstância dos acasos, desventuras, escolhas antigas de ancestrais que repousam pesados como chumbo em algum lugar agora a quilômetros daqui.

Mesmo distante, eu não posso dizer se um dia te deixarei de verdade, ou, pelo menos, se haverá alguma forma de eu te esquecer, de não pensar em voltar a ti e aos teus horizontes mais belos. É improvável, dadas as minhas décadas, que responda precisamente para onde quero ir, onde quero estar, onde me sinto bem e sonhador. Acho que requisito de casa é onde o sonho é sereno, onde a fagulha da esperança acende sem razão, onde os toscos detalhes são trunfo maior. E não tem benta fronteira, sagrado templo onde eu me deito assim a ensaiar meus íntimos desejos. Onde eu pouso a cabeça no travesseiro, despreocupado com os tempos, os vícios do mundo e meu lugar neste tempo. Outro dia escrevi que eu me escondo na arte, que eu mergulho nos livros tantos que me cercam, tentando achar na enchente um lugar seguro, que chamei de refúgio. Talvez, então, minha Pólis não seja física, talvez seja ela um instante no tempo, um conjunto de palavras, de cenas, o próprio cinema, que se manifeste quando vejo, que me receba quando eu me ponho a ver, ler e escrever. A minha paz nasce aqui, no momento em que eu costuro a minha consciência em alguma lógica ora literária, ora terapêutica de achar sentido na linha de coser a história, ponto a ponto, causo a causo.

Talvez seja a minha pólis meu próprio corpo, minha morada que não se descola da minha consciência, como uma tartaruga que se recolhe dentro do casco e ali permanece segura, assustada, mas segura, e por óbvio não divide com ninguém aquele vazio. Minha pólis é, portanto, limitada à população de um, limitado a ser eu habitante e regente de uma morada, declamando poemas nas praças como um ato mnemônico da minha história. Uma sátira da Pólis dos gregos, sem conselhos ou assembleias, sem povo e somente um eco de muitas existências que me atravessaram na corredeira dos anos.

Meu corpo é minha pólis, e talvez as vozes de minha ágora clamem por um inédito e singelo ato de amor.

Meu corpo é minha pólis.

- A

 


A imagem foi gentilmente dedicada ao texto por Hermano Zenaide, que publica desenhos e opiniões em sua página no Twitter: https://twitter.com/hermanozenaide

domingo, julho 03, 2022

Meu refúgio



"¿Qué hace un autor con la gente vulgar, cómo ponerla ante sus lectores y cómo hacerla interesante? Es imposible dejarla siempre fuera de la ficción, pues la gente vulgar es en todos los momentos la llave y el punto esencial en la cadena de asuntos humanos; si la suprimimos se pierde toda probabilidad de verdad."

Capítulo IV de la novela “El Idiota”, de Fiódor Dostoiévski.

Epígrafe de Los premios por Julio Cortázar, 1960.

Meu refúgio

Meu refúgio é a arte. E quando a vida doída, sofrida, me mata, quando o sorriso da moça me assalta, eu me escondo no livro, no cine, na carta, na música velha e bebida barata.

Meu refúgio é a arte. E quando ouço na esquina dos bares as tuas velhas canções, me estalam no peito funestas paixões.

Meu refúgio é a arte. E quando exausto me deito e praguejo calado, espero ansioso brilhar da soleira teu riso cansado.

Meu refúgio é a arte. E quando não houver mais refúgio, quando tudo for vácuo, hei de abrir o livro, lembrar dos teus lábios, adormecer nas rodas do tempo a dor do passado.

Meu refúgio é a arte. E quando lembra minha boca teu gosto de fel, eu volto à pena, à tinta e ao papel, lamento a chaga que se abriu por descuido, repito qualquer bordão de mãe, algum causo antigo.

Meu refúgio é a arte. E quando tu me ofereces abrigo ou caminho, eu desvio o trajeto, me faço abjeto, p'ra que ao deixares meu teto não lhe doa também a falta que sinto.

Meu refúgio é a arte. E quando partires p’ra longe, quando deixares o ombro, quando fores de outrem, serás também fraco abraço de neurônio, novo espaço de um parágrafo, de cena, sala da filosofia que se esgueira nas voltas do meu dia.

Meu refúgio é a arte. E quando cansar-me da rima, da mais tola e estúpida métrica mínima, vou então cantar à sorte de não mais ver-te em tudo, nem no verde, nem no outro, nem nas moças bonitas ou no medo. Do mundo.

Meu refúgio é a arte. E quando eu quiser me esconder, me guardar de ti, não será pessoa ou moeda a me encontrar aqui. Será enfim o choro, o artista e minha teimosia que irão me salvar dessa crua agonia.

Meu refúgio é a arte. E quando teus olhos me fitarem de canto, tentando achar meu riso, o mais bobo, talvez seja então tempo de choro, de mágoa e de pranto.




A imagem foi gentilmente dedicada ao texto por Hermano Zenaide, que publica desenhos e opiniões em sua página no Twitter: https://twitter.com/hermanozenaide

quinta-feira, janeiro 02, 2020

Todas as ignescências


"Hasta lo inesperado acaba en costumbre cuando se ha aprendido a soportar."
Todos los fuegos el fuego por Julio Cortázar (1966)

Divisava então o espírito
Que o hipnótico vestido ornava
No topo da cabeça desciam os fios.
Pensava ser sangue, pensava ser raiva
Timidez até, mas era lava...

A brasa imperativa escorria-lhe, ora leve, ora bruta, pelos ombros. Eram ombros fugidios, nobres, como se o tempo tecesse voltas mais longas em volta de ti e retesasse a corrente dos segundos, minutos e das horas. Um maneirismo curioso dos olhos fazia-na mais notável quando sem a intenção encontrava os meus à distância e recolhia-os ao copo e à vista. Não tinha porquê – eu pensava com os cubos de gelo a derreter em meu copo... Doía-me a fuga!

Apesar de já bem moço, era de gênio dócil, não haveria de fazer-lhe mal nenhum. Justificaria essa sentença por não ter sido marcado pela cicatriz da rudeza ou da impulsão, por isso pacientemente brincava de medir os passos até a ponta dos teus dedos miúdos, brancos como a pele – e de me ver ensaiar algumas palavras de mais ação. Dado o tempo que amadureceu essa narrativa, decerto me esqueci de guardar nos palácios da memória que foi que dissera para prender-lhe a atenção. Não precisou força para que o oposto ocorresse, pois – regra feita e antiga – não se brinca com a tez e a temperatura dos cabelos. Arderam-me as bochechas logo que pousou em mim os apertados olhos em um sorriso silencioso. E veja tu que não sou de causo ou anedota. O sorriso viera de presente (!), gratuito e sem medo. A lava seguia escorrendo pelas mãos, entre os dedos, o que não escondia de fato a minha surpresa.

O som e a multidão corroíam os tímpanos e despertavam os pudores. Era eu a presa ou a raposa? Num susto, lembro-me, sugeri a fuga ao primeiro badalar da madrugada. Eu já com os sentidos marcados, desejando silenciosamente que a boca rubi pousasse serena sobre a minha. E o fez, como se não fosse preciso cerimônia ou convencimento... Tímida e lentamente como eu desejei que fosse, provando-lhe a eletricidade que agora inundava meu rosto corado de intenções. Era uma espécie de confissão ou teste, o qual passara sem entender a razão. Minha mente inebriada de ideias muito à frente do que aquele tempo nos oferecia, travando uma batalha intensa com a necessidade de controlar os arrepios que me indicavam aonde ir. Era tempo, mas talvez retrato. Acalma-te.

Bem perto, tomava-lhe as mechas ainda sem a familiaridade que desejava, organizando - enquanto sentia a respiração misturada à minha - os fios mais rebeldes que se fundiam aos meus. Sentia-os fazerem cócegas pelo meu corpo, aventurando-se atrás das orelhas, braços e pescoço. Eram levados pela pouca brisa para conversar com os meus curtos e discretos como mandava o ofício de professor. Sabia já de pronto que talvez fosses tu a flor da moita, ou alguma ninfa, sinal de sorte. Havia certo tempo que eu não sentia os músculos cederem assim, pouco rijos; não diria frouxos porque não cai bem, mas amenos, calmos, desalarmados. Era eu já um corpo celeste em órbita, um errante planeta como o de Trier, porém sem a responsabilidade de destruir, apenas de criar à luz refletida da íris mais viva que qualquer melanócito se pôs a colorir. Os olhos não fitavam somente a minha face, mas a minha história, despiam-me sem que eu tivesse escolha, viam-me através e sorriam de volta enquanto as mãos corriam as costas já um pouco agitadas. Devia ser uma maldição e uma benção carregar aqueles orbes, quanto poder...

Os copos tilintavam no ritmo dos corpos – ou seria o inverso? – enquanto suprimidas minhas gargalhadas se abafavam na sua pele, a qual desprendia uma fragrância nova e pura que eu começava a conhecer. Tínhamos a cadência da perdição, e eu precisava não achar saída. A noite avançava fria sobre aquela miríade de prazeres, enquanto no abrigo abaixo da escada eu a tinha hipnotizada em minhas mãos e hipnotizava-me também junto aos padrões repetidos do vestido estampado que, lisérgico, eu projetava arrancar devagar. Olhava a renda a tentar organizar algumas ideias, porém cada pequeno movimento – por mais suave e frugal que fosse – roubava minha concentração. Cada um contribuía um pouco mais para a confusão dos desenhos, convidando-me a uma breve e atrevida alucinação. Queria poder materializá-los mais uma vez para que entendesse como eles me encaravam; deviam ser polígonos ou fractais monocromáticos, alinhados como os astros o fizeram naquela noite impossível, um desenlace de moedas lançadas, dados e acasos.

Havia, claro, retumbante na minha mente aquela canção que brincava sobre dez decisões inteiras que moldam nossa vida, aquela que caçoa da pouca consciência que temos da maioria delas, talvez cinco... Eu temia que aquela fosse uma em meio a essa estranha estatística, mas era demais para aquele sopro de tempo. Desejo, assim, de forma isolada e súbita, sempre me sai como uma pequena alegria e uma pequena morte; um paradoxo que entre os dedos eu tento agarrar enquanto teimoso escapa pelos dedos em tom de despedida. E talvez fosse a hora. Chamavam-nos à porta, hora de ir, já o glamour, as gargalhadas e a música silenciaram-se sem que pudesse notar – decerto efeito das hipnoses vindas do vestido a embaralhar a razão.

Desconectar-me daquele templo pareceu-me um pecado – ainda que fosse herege. Recuar daquele impulso era a semente, a essência dos erros mais infantis... O rosto fumegava ao compasso dos tecidos, derme, epiderme e alma... As palavras falharam em ganhar vida, e nessa falta nasceu este escrito, vontade de redimir o desconcerto do relato. Se fosse hora de partir, ficaria enraizado ao instante, sincronizando minha respiração e permitindo que cada pensamento derretesse em contato com os fios de magma. Na saída, como uma surpresa, um presente, ela pousou brincalhona no estofado já um pouco envelhecido do carro que nos esperava sob o sereno. As gotículas desenharam na nossa ausência centenas de pequenas bolhas de água sobre a lataria alva como a pele da dama. No caminho de casa, eu pisava gentilmente o acelerador, fazendo durar cada fração de milha. Temi, porém, que adormecesse, mas ela teimou em me vigiar na direção, colecionando minhas dezenas de expressões a confessar um prazer discreto e ingênuo de tê-la entregue à companhia. No alto falante um som delicado começou com Tomoko Aran ou Taeko Onuki, que durou pouco até eu desejar vê-la espreguiçar sobre os lençóis brancos. Fuzilou-me a lembrança de que por descuido ou receio havia esquecido de estica-los. Acelerei; junto a uma enorme antecipação por ver os cabelos tingirem rubro a branquidão quase estéril do aposento, lembrando-me das anedóticas e risíveis críticas dos amigos. Jamais saberiam desse pequeno prazer, o quanto ele me remetia a um canvas vivo e imaculado, o qual eu jamais pararia de contemplar se me fosse assim dada a chance de escolher aquela que ali deitaria.

A complexa rede, a aquarela de pele, corpo e palavras me fizeram absorto em prová-la. Ainda que parcialmente sinestésico, o paladar torna as experiências mais intensas, dado que junto dele a audição de um prazer secreto se fazia desvendado ali mesmo enquanto eu saboreava devagar as suas belezas. Talvez fosse um ponto fraco ou uma virtude que eu descobria, ambos sendo um privilégio construído às pressas mesmo quando me indagava sobre meu cansaço de fazê-la estremecer as pernas. Não tinha tantas possibilidades assim, era um estranho vício que reverberava na história, o risco somado ao impulso, à pulsão de fazer-nos um, participar e sentir surgir eruptivo de sua voz, músculos, olhos e pele o que eu costumava brincar de supernova – cientificismo até nessas danças. Erupção que somente o vermelho mais puro de um estudo de cores saberia explicar. Era linda, era bela, palavras pouco fiéis à imagem que tento aqui provocar. Linda e bela ou outro adjetivo remetem a figura estática e dada à contemplação, inerte. O que eu via e tocava era apoteótico - e não se espante sobre o divino – eu poderia ficar horas contracenando com ela no ninho que guardava as brasas a chamuscar o linho, formando curiosas voltas e desenhos que eu escolhi conhecer. Embaraço, não o de vergonha, mas o físico. Fio sobre fio, corpo sobre corpo, e força. Manifesto do desejo, menos cálido talvez, mas a própria falta de conhecimento dos atalhos da dama fez-me genuinamente mais ávido a versar-me nas letras de seu corpo. A esse ponto eu me queimava nas madeixas rubis e a deixava costurar-se no encontro dos móveis até se aquietar num prazer que apenas à vista eu poderia partilhar. Não havia pressa, somente uma natural ansiedade por tentar encontrar um final, que ali era tão improvável quanto nomear as personagens de um romance russo. Ela não era só um caleidoscópio a mudar em minhas mãos a cada gesto, mas um fractal orgânico de pensamentos, sensações e prazeres, onde quanto mais eu acessava mais me perdia; acompanhado de suas deliciosas gargalhadas de êxtase e sadismo a me ver num falso e imaginário controle – tão logo arrebatado pela força de suas pernas a me manter ali subjugado aos seus caprichos cruéis.

Sua boca já se tingia de carmim quando notei que por impulso ela mordia os lábios tão forte que superava a razão de se frear. Pouco a pouco – e isso eu jamais esqueceria – ela esculpia uma cicatriz profunda que eu pude sentir – e aqui eu faço uma pequena menção ao ritual do cisco de Nabokov - pois como num beijo eu quis sentir com a ponta da minha língua o pequeno corte derivado de seu impaciente deleite. Era poético, eu dissera, embora pense ser o único a vê-la assim. Também não creio haver humano capaz de pensar isso como transparentes e subjetivas poesias, dado que um ato tão instintivo e já desprovido de brilho, raramente guarda essas pequenas luzes. E talvez não haja precedentes que narrem história gêmea à minha a título de comparação. Mas isso eu não saberia dizer por certo.

 Enfim, voltemos. Sua boca pulsava ao ranger dos dentes, enquanto a minha tentava sarar a dor advinda do gozo. Ela se mordia e trocava a ordem dos gestos, como se quisesse me contar de um delírio qualquer. O vestido pousava fora da cena e eu me segurava para não olhar, competindo com a luz e sombra refletidos na pele da moça, tudo isso sincronizado com o calor dos cabelos e discretos pelos, queimando-me e fazendo-me senti-la úmida, ardente e sensível a qualquer micromovimento que eu arriscava. Sua voz balbuciava lentamente ao meu ouvido enquanto eu pousava a cabeça nos ombros para inundar os tímpanos com suas confusões. Os lábios ainda carmim se escondiam entre os dentes a mordê-los e enterrá-los num jogo dialético de um apetite inefável.

Eu já ofegava, ansioso e refém de sentimentos que agora nem a idade me ajudaria a descrever. Assustei-me um pouco com a cadência de dois em um só, mas talvez fosse só a euforia de tudo acontecendo de novo. E de novo. A essência da descoberta, o sorriso sádico que escapa às aparências, a mão que encontra um rosto rebelde, ironicamente com ternura e volúpia.

Ao final, quando a virtual meia noite se fez concreta, os raios de sol de um meio-dia veranil irrompiam da janela. A consciência despertava-nos daquele fragmento de tempo, presente das incalculáveis coincidências. Ambos trêmulos, eu já me perguntava sobre como iria dirigir até a casa da pequena com os sentidos tão consumidos pelas marcas que ela deixara. Não podia insistir, regra simples da modernidade, para que repousasse ali, embora não só do simples prazer meu riso frouxo se fazia ali evidente no rosto, mas a chance de tê-la aninhada nos meus ombros também. Como na ida, acelerei o mais devagar que pude para levá-la até sua casa. Era justa a troca que eu propunha, inconsciente do risco de esperar mais ouro daquele dia, mais do que o acaso me presenteara sem a devida retribuição de minha parte.

Um beijo longo selou sua despedida, enquanto uma movimentação estranha no jardim agitou-a na descida do automóvel. Os olhos claros me fitaram uma última vez, suficiente para que eu reafirmasse a realidade que de forma juvenil eu tateava.

Na minha volta para casa, a cena se repetia... Os móveis se liquefazendo, outros emergindo, uma tensão que uma faca seria capaz de fatiar... Até que um inocente e puro sono me arrebatou como se eu imergisse num oceano imponderável, escuro. Na estante, ao lado, o telefone me chamava minutos depois sem sequer respeitar minha boba e particular alegria de um amante. Atendi. Uma voz rouca, tão velha quanto o tempo pode alcançar, me achou ainda meio torpe procurando os óculos. Uma voz masculina arrastada que eu reconheci logo, a qual me fez baixar os olhos em reprovação. Não esperava isso tão cedo.

_ Sr. A? Doutor Bauman falando. Precisamos conversar. De súbito me alarmei com aquela voz, pondo-me de pé, olhos abertos e um pequeno suspiro de consentimento correu minha garganta ainda queimada pelas centelhas da noite passada.

_ Ah, naturalmente. - respondi, entendendo meu papel – vou me vestir. Não cabia contestação. As coisas eram como tinham de ser. E havia também aquela velha frase de que as coisas acontecem por alguma razão. Coisa que eu sempre rechacei sem dar dois dedos de prosa.

O som oco do telefone se encaixando na alavanca seguiu retumbando na minha cabeça por alguns minutos. Sorri com certa ironia, mas guardei as vozes da noite nas salas mais interessantes do palácio, antes que meu compromisso varresse dali qualquer vestígio. Dr. Bauman não iria se zangar com um pequeno atraso e um deslize como esse. Não é assim que terapeutas operam. Cheguei ao consultório com duas batidas na porta, ao que a criatura frágil e antiga me atendeu. Olhou-me nos olhos com certa compaixão e crítica, pondo de lado as cerimônias que temos no começo de cada sessão. Eu sabia que a tarde ali seria demorada, pois havia muito por dizer. E precisava. A máquina de café apitou um som agudo avisando-nos de que o elixir que nos mantinha acordados havia ficado pronto. O velho me passou a xícara que segurava com as mãos trêmulas, a fumaça me alertando do quão quente estava. Num longo suspiro ele iniciou sem que eu antes pudesse me preparar. Copiei o suspiro como se elaborasse as ideias com ele.

_ Não há mistérios. – eu disse logo - Aconteceu mais uma vez.




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